segunda-feira, 2 de março de 2020

Cézane (Cézanne - Dialogue avec Joachim Gasquet (Les éditions Bernheim-Jeune)) 1990

A importância revolucionária da obra de Paul Cézanne e a forma como abriu caminho para as profundas transformações na pintura do século XX, são hoje consensuais no mundo artístico. Talvez menos conhecidos sejam os seus contributos em termos daquilo que poderíamos chamar uma filosofia da arte, ou seja, uma reflexão teórica sobre as condições e implicações da criação artística. 
É neste aspecto particular e que chama menos a atenção do público, naturalmente mais atento ao resultado artístico do que às condições da sua concepção e execução, que Daniele Huillet e Jean-Marie Straub concentraram o seu foco através da média metragem Cézanne, com cerca de 50 minutos. O documentário é constituído por uma montagem da correspondência entre Paul Cézanne e o crítico Joachim Gasquet. Não há aqui nenhuma preocupação de natureza biográfica ou de apresentação extensiva das suas obras. Pouco são os quadros apresentados e sempre filmados na sua totalidade, emoldurados e enquadrados na parede, além de algumas fotografias do pintor. O que se salienta são as palavras de Cézanne lidas em voz off de forma notável por Danièle Huillet, interrompidas por pequenas frases e perguntas de Jean-Marie Straub. Trata-se de um conjunto de reflexões sobre a génese e o processo da criação artística, a importância e o significado das cores, a relação entre a pintura e as outras artes e a forma como o artista se inspira e simultaneamente distancia da natureza que serve de inspiração, mas que, simultaneamente, é necessário poder ultrapassar, de forma a vincar o seu cunho criativo. Ou seja, a percepção com que ficamos é que Cézanne não é apenas um pintor, mas sim um homem que pensa a pintura, a sua e a de outros como um todo indissociável. Reforçando esse aspecto particular, faz todo o sentido a inserção de dois excertos do filme anterior, A Morte de Empédocles. Poderá parecer surpreendente para quem está menos habituado ao processo de trabalho de Straub e Huillet onde todas as conexões são possíveis e propositadas. Os excertos em causa são monólogos do filósofo e da relação que estabelecia entre os seres humanos, a natureza aos deuses, estando em perfeita consonância com as próprias reflexões do pintor. Numa passagem do texto há uma referência a Gustave Flaubert e ao seu livro mais célebre, Madame Bovary. Aproveitando essa passagem, é inserido no filme um excerto de sete minutos da mais célebre adaptação do romance de Flaubert ao cinema, a de Jean Renoir de 1934, exactamente a que se refere à antevisão do início das relações adúlteras da protagonista do romance. Para além da relação imediata que se estabelece entre os dois filmes por via da referência ao escritor, podemos encontrar aqui uma homenagem óbvia ao grande cineasta que foi uma figura tutelar de todo o cinema francês e uma influência decisiva para a geração de cineastas em que Straub e Huillet se incluem. E embora a sua carreira tenha sido sempre demasiado singular e marginal para poderem ser incluídos em qualquer grupo ou movimento como a nouvelle vague ou a rive gauche (reforçada pelo facto do início da sua carreira ter-se desenvolvido na Alemanha e não em França) eles consideravam-se herdeiros de uma tradição do cinema clássico que passava por nomes como Erich von Stroheim, Fritz Lang, Carl Th. Dreyer, John Ford e, naturalmente, Jean Renoir e partilhavam com Godard, Truffaut, Rivette ou Resnais, o fascínio pela obra do autor de A Regra do Jogo. A propósito ainda de Renoir, Straub afirmou: «Parce que, Renoir, c’est le cinéaste que je préfère. J’ai mis dix ans à le préférer à tous les autres. Bon. Il m’agaçait beaucoup au début, je le trouvais, comme John Ford, un peu sentimental. Et il a fallu que je prenne un tout petit peu de bouteille pour m’y intéresser. Ensuite, j’ai découvert que c’était le cinéaste le plus concret, le seul vraiment concret. Il y a des cinéastes plus grands, il y a Stroheim, il y a même Dreyer, il y a même Feuillade. Il y a Mizoguchi, il y a Fritz Lang. Je ne veux donc pas dire que c’est le plus grand cinéaste, mais c’est le plus particulier, celui qui a le mieux compris ce que c’est que le cinéma. C’est-à-dire un petit va et vient entre le théâtre et la vie. Voilà. L’abstraction et la réalité. Voilà. Quant à La Grande Illusion, c’était le film de Renoir que j’aimais le moins parmi tous les films de Renoir. Et j’ai eu envie de le revoir ce soir. Je ne l’ai pas vu depuis 15 ans. Surtout qu’entre temps, je suis allé tourner un petit film au Mont Sainte-Odile qui est le pendant du Haut-Koenigsbourg dans les Vosges. C’est au Haut-Koenigsbourg que Renoir a tourné La Grande illusion. Moi, le Haut-Koenigsbourg, je ne l’avais jamais vu. Je suis allé le voir pour la première fois il y a 6 mois. Et j’ai envie de le voir sur l’écran. Et je vous souhaite une bonne soirée. Et après, vous me direz tout ce que vous avez envie de vous dire, ce que vous avez envie de me dire…» 
Obra fundamental no universo de Straub e Huillet, Cézanne seria continuado por Uma Visita ao Louvre de 2004, outro movimento típico dos cineastas para regressar, passados muitos anos, aos mesmo temas e autores a partir de perspectivas distintas. No texto da Cinemateca é considerado um dos mais extraordinários filmes alguma vez feitos sobre pintura. Penso que mais palavras são desnecessárias… 
Legendas em Inglês.
* texto de Jorge Saraiva

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