segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Fantasy Lo-Fi

Lo-Fi Sci-Fi é um subgénero que tem estado muito em voga nos últimos anos, inspirado pelo Mumblecore e pelas restrições orçamentais. O termo deriva da união de "Lo Fidelity" (baixa fidelidade) e ficção cientifica, e aparentemente pretende justificar o baixo orçamento e uma abordagem amadora a um filme de ficção científica, sem grandes efeitos especiais, sem guerras interplanetárias, mas sempre com algum interesse.  Entre os filmes que fizerem sucesso nestes últimos anos, contam-se obras tão interessantes como "Moon", "Her", "Under the Skin", "Upstream Color", "Coherence", entre tantos outros.
Este seria o ponto de partida para este ciclo, mas não é, porque na realidade iremos ter um ciclo muito diferente:
- Em primeiro lugar iremos esquecer todos estes filmes que vos falei em cima, e que muito provavelmente já ouviram falar, e iremos, sobretudo, privilegiar o cinema europeu, tantas vezes esquecido no que consta a este género (mas também iremos ter alguns filmes americanos).
- Em segundo lugar, vamos também sair um pouco do mundo da ficção científica, e conhecer outros mundos alternativos, outros territórios lynchianos, outras abordagens ao território da ficção científica e ao mundo dos sonhos.
Desta forma, teremos um ciclo completamente diferente do que esperavam, espero eu, e que é difícil de descrever por palavras. Vai ser descrito por imagens, e podem acompanhá-lo aqui, durante os próximos dias. Serão 14 filmes ao todo. Preparem-se.


domingo, 29 de setembro de 2019

I Ragazzi di Celluloide (I Ragazzi di Celluloide) 1981-84

“I ragazzi di celluloide” foi feito para a R.A.I. em episódios e é uma das obras preferidas de Sollima, retratando os seus dias no Centro sperimentale di cinematografia[1] na personagem de Nicola, interpretada por Massimo Ranieri, alter ego do realizador. A Fabio Zanello, em 2004[2] e sobre “I ragazzi”, Sollima disse, “Tem de ver! Porque é uma história vagamente autobiográfica, ligada à minha geração. Um pedaço da história da Itália! As séries deviam ter sido três: da Segunda Guerra Mundial aos dias de hoje. Durante o fascismo os jovens apaixonavam-se pelo cinema para escapar àquele manto asfixiante de imbecilidade. Os acontecimentos remontam a 1941. O cinema era um sonho para nós. No elenco estavam Massimo Ranieri que se junta à Resistência e se apaixona pela Roberta Paladini, Alfredo Pea, que na ficção gosta de homens e não de mulheres, Massimo De Rossi no papel de um aluno muito talentoso, e o meu adorado William Berger já usado em Cara a Cara (1967) na pele de um professor comunista. Depois havia Leo Gullotta que faz de judeu e é óptimo como sempre. A primeira série agradou muito, foi à Mostra de Veneza e depois a Nice. Passou um ano e exibiram a segunda série em Ferragosto. Foi Kezich quem me fez o melhor elogio ao trabalho: ‘De agora em diante já não vais ser conhecido como o homem que fez “Sandokan”, mas sim como o homem que fez “I ragazzi di celluloide”’.”
“Ragazzi” começa muito apropriadamente com uma sequência de planos dos filmes com que Nicola sonha, depois dos créditos em fundo azul com o belíssimo tema principal composto por Giorgio Gaslini e que nos reenvia imediatamente para essa saudosa idade por que todos passamos e em que achávamos ser tudo possível. “The age of miracles”, como lhe chama Barbara Stanwyck quando ouve Marilyn Monroe dizer-lhe que tem 20 anos em Clash by Night (1952) de Fritz Lang. Nicola sonha com King Kong (1933) de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, Uma Noite Aconteceu (1934) e Não o Levarás Contigo (1938) de Frank Capra, The Plainsman (1936) de Cecil B. DeMille, A Carga da Brigada Ligeira (1936) de Michael Curtiz, Tarzan o Homem Macaco (1932) de W. S. Van Dyke e Chapéu Alto (1935) de Mark Sandrich, aparecendo com Gary Cooper, Claudette Colbert, James Stewart, Jean Arthur, Errol Flynn, Fred Astaire e Ginger Rogers entre tiroteios e danças, por entre fumos de pólvora e das máquinas dos estúdios e pelos cenários dos musicais de Hollywood. Sonha também em entrar no Centro sperimentale, junto com o amigo Piero (interpretado por Alfredo Pea), comparsa das centenas e centenas de sessões de filmes americanos e aspirante a figurinista, com quem fala “della Garbo” e “della Davis” e com quem vê Stagecoach (1939) três vezes nesses cinemas de bairro, “numa sala plena de vida, de homens transpirados que mandavam bocas para os heróis do filme (‘olha o gajo!’, ‘prega-lhe mas é um beijo!’), numa cópia riscada, que a meio se calhar se partiu, e numa projeção pela certa desfocada”, como escreveu Jorge Silva Melo a propósito de The River's Edge de Dwan[3]. Havia de gostar muito de “Ragazzi di celluloide”, Jorge Silva Melo. Com a ajuda de Luca (Massimo De Rossi), Nicola e Piero entram no Centro, onde conhecem Teresa (Roberta Paladini), Leopoldo (Leo Gullotta) e o professor Nicodi (William Berger) e formam o núcleo de personagens que vão viver o cinema, mas também os terríveis dias do fascismo e da guerra, testar lealdades, prioridades e fibras humanas todos os dias. Como logo nas primeiras e muito conhecidas palavras de A Tale of Two Cities de Dickens, “It was the best of times, it was the worst of times.” Mas se o cinema serviu, nas palavras de Sollima, “para escapar àquele manto de imbecilidade”, serviu também para o pôr em perspectiva. Como quando Nicola, logo após saber que a amada Teresa foi apanhada pela polícia, encontra Nicodi e juntos veem A Grande Ilusão (1937) de Jean Renoir, no momento em que os prisioneiros de guerra do filme começam a cantar La Marseillaise, olha para o professor e espera que este olhe de volta para lhe dizer o “Bisogno fare qualcosa” que encerra a primeira série de “Ragazzi” e do qual é impossível duvidar; nunca quando o único som é o do hino francês a ecoar pelas paredes dessa sala da Cineteca (o “piccolo regno, ma così grande” de Nicodi, como diz Nicola no final da segunda série) e sentimos que para aqueles rapazes que olharam a guerra nos olhos e sentiram na pele as abalroadas do regime, acabou a idade da inocência.
Na série, Sollima fala disto tudo enquadrando-o no seu contexto histórico, usando imagens de época para construir grandes sequências didáticas, como faz também no seu livro Il cinema in U.S.A. de 1947, em que antes dos capítulos da primeira parte descreve minuciosamente os mecanismos políticos, sociais, económicos e culturais que tudo e todos condicionam, como as guerras de patentes na virada do século, a ressaca da guerra civil ou o início da grande depressão nos anos 1930. Em “Ragazzi”, veem-se fotografias da guerra, de grandes marchas fascistas, do “Duce” em campanha, das revistas do Centro sperimentale, a Bianco e Nero e a Cinema, de Alida Valli a cantar Ma l’amore no – canção famosíssima e importantíssima na Itália dos anos 1940 –, do final da guerra, do início da mobilização comunista e da chegada das forças aliadas a Roma. É neste espírito de mudança e de restabelecimento da ordem que Piero diz a Nicola, “Nicolino, quanto può essere bella la vita quando è futile”, quando veem ambos Sun Valley Serenade (1941) e toca Glenn Miller[4] (com John Payne e a banda de Miller) – norte-americano importantíssimo para esta geração que viveu a guerra e o pós-guerra. É ainda neste espírito que Sollima constrói uma bela sequência, no segundo episódio da segunda série de “Ragazzi”, em que aumenta e aumenta a euforia da liberdade, nos rodopios à volta da mesa e em que escorrega champanhe da garrafa e os seios de Lea (Michela Miti) espreitam pela camisa, fazendo dobrar e redobrar a velocidade dos rodopios e da euforia até cortar subitamente para a festa na casa de campo de Nicodi, em que se dança ao som de Miller e a energia contagiante de In the Mood ganha par na energia que Sollima imprime à montagem e permite também aos seus atores. E os atores em “Ragazzi” são tão capazes da maior contenção como da maior emoção, sendo bom exemplo disso, mas também da consciência de Sollima em relação a isso, uma cena logo no primeiro episódio da primeira série, em que Teresa faz uma prova de interpretação para entrar no Centro e Sollima nos faz perceber (ainda que seja com um simples jogo de escalas de planos) o seu talento e como é superior aos colegas que a antecederam. Não muito diferente do que faz, por exemplo, mas por outros meios, Clint Eastwood em Jersey Boys, quando Bob Gaudio ouve a voz de Frankie Valli pela primeira vez e se percebe a real medida do talento do vocalista dos The Four Seasons. Impressiona, também, a explosão de Nicola na casa dos pais, quando lhes diz que vai viver com Teresa e deixa sair o que sente em relação à sua vida e às suas aspirações e remata dizendo que não as pode conter mais quando os pais se fecham na sala e não lhe respondem a absolutamente nada, transparecendo tanto a raiva como o amor que Nicola sente pelos seus pais na interpretação de Massimo Ranieri, enquadrado com a porta fechada. Amor porque são os pais dele e raiva porque defendem e respeitam um regime político que o põe completamente doente e que só consegue esquecer indo regularmente ao cinema. Sentimento próximo do que o aproxima e repele de Luca, técnico exímio mas que assente com a mediocridade e a deixa encher cada plano que filma, achando que a tem controlada e pensando em tudo como um desafio formal que o permite falar “sotterraneamente”, julga ele, mas acabando seduzido pelos doces perfumes da banalidade. Interessa muito a Sollima saber exatamente como se maquinam estes assentimentos e estas seduções e portanto as cenas de filmagens, de rushes ou de mera discussão de ideias são sempre muitíssimo reveladoras. 
A segunda série de “Ragazzi” começa no preciso momento em que Nicola e Piero voltam da frente de batalha e querem dar os primeiros passos na traiçoeira indústria do cinema. Teresa é libertada pouco antes de acabar a guerra, reencontrando Nicola numa bela sequência de campos e contracampos e que vão pontuar todos os seus encontros e todas as suas despedidas, com a música de Gaslini que acompanhava os créditos dos três episódios da primeira série a servir sempre de banda sonora. A relação deles muda com o fim da guerra, mas já quando ela pairava por Roma e pelo mundo as prioridades dos dois pareciam afastá-los um do outro: Nicola na direção do cinema, Teresa na da luta política e armada contra o regime de Benito Mussolini. Muitas vezes ela o tinha repreendido por se desligar do mundo e do que se passava nele, usando o cinema como refúgio, e muitas vezes ele dizia a ela que não lhe via sentimentos mas uma ideologia fria e calculista. Separam-se por causa do cinema, que Nicola não quer deixar, e voltam-se a encontrar também por causa dele, quando Teresa vira heroína da Resistência no Norte da Itália e querem fazer um filme sobre as suas façanhas, com “Laura” (nome de batalha de Teresa) interpretando a si mesma. É o grupo habitual que fica responsável por realizá-lo: Nicola é o argumentista, Piero é cenógrafo, Luca o realizador e Leopoldo um dos atores, acabando o papel de “Laura” nas mãos de Lea, rapariga ambiciosa e com vontade incontrolável de ser estrela, quando Teresa recusa interpretar-se a si própria mas diz poder continuar a servir como conselheira técnica. O resultado é frustrante, porque tal como no projeto anterior de Luca, foi-se cortando ali e aparando aqui com justificações estéticas, mas o âmago e o móbil do projeto perderam-se pelo caminho. Perdeu-se também o grito de revolta de Nicola e o que este sentiu, por exemplo, a ver Obsessão (1943) de Luchino Visconti ou o Roma, Cidade Aberta (1945) de Roberto Rossellini, que é também personagem na série (tal como Federico Fellini), e que o outro filme que escreveu também podia ter: frescura, vigor, força. Compraram-lhe o roteiro e ensinaram-lhe que quem compra os direitos normalmente quer ficar sem os deveres, e finalmente que é preciso recusar fazer certas coisas e ir beber uns copos com os amigos para falar de cinema e rir na frente do falhanço e da tristeza, imaginar que motivos, razões, que histórias e mistérios escondem os passos anônimos e apressados que ecoam na calçada e nas paredes das ruas de Roma. E, quando se achava impossível estar a vida à altura das grandes cenas romanceadas do cinema, os passos transformam-se primeiro em sombras e depois na Teresa de tantas despedidas, sem palavras, reunida ao antigo grupo que sempre sonhou estar ao lado das grandes estrelas de Hollywood, e agora pode dizer que viveu e sofreu o suficiente para merecer uma cena saída de um grande filme, enquanto a cara de Teresa enche o ecrã com um sorriso que faz antever um grande recomeço para ela e para Nicola, num freeze frame enternecedor ao som da música nostálgica desta nostálgica série. Nicola sempre se queixou que a vida não fazia jus aos grandes filmes (ou pelo menos aos “nossos” filmes), mas aprendeu que não há filme algum que supere esses pequenos momentos urdidos pelo destino e que nos chegam para uma vida inteira, recordados entre lágrimas e sorrisos. 

[1] O Centro sperimentale di cinematografia foi fundado oficialmente em 13 de abril de 1935, após Alessandro Blasetti ter estabelecido as bases de uma escola que formasse profissionais de cinema, no início dos anos 1930, e de ter dirigido um curso de interpretação em que os alunos visitavam hospitais e asilos de loucos e viam pessoas em situações extremas de forma a praticarem um estilo de interpretação estritamente realista. Achando isso insuficiente, a recém-formada Direzione generale per la cinematografia funda então o Centro sperimentale, deixando-o nas mãos de Luigi Chiarini (o modelo para a personagem interpretada por Pietro Biondi em Ragazzi), que manda construir um novo edifício e que junto a Umberto Barbaro (a base para a personagem interpretada por William Berger) forma vários cineastas e atores italianos, como Michelangelo Antonioni ou Alida Valli, além do próprio Sollima. É este o período retratado nas duas séries de “I ragazzi di celluloide”. Entre 1968 e 1974, é Roberto Rossellini quem dirige o Centro. 
[2] La regia come match di boxe – Intervista a Sergio Sollima, 4 de agosto de 2004. 
[3] “Allan Dwan: Matar para Viver. Culturalmente incorrecto”, Público, 15 de março de 1995. Republicado em Século Passado (Cotovia, 2007). 
[4] Alton Glenn Miller nasceu em 1 de março de 1904 no Iowa e foi um dos símbolos maiores da era das big bands, gravando e compondo grandes sucessos como In the Mood, Moonlight Serenade e Moonlight Cocktail (que aparecem todos em “Ragazzi”). Em 1942, Miller quis se juntar ao exército e voluntariou-se também para entrar na marinha, mas recusaram-no por ter 38 anos e não precisarem dos seus serviços, acabando por conseguir, no entanto, que o exército o aceitasse como líder de uma banda militar (a Army Air Force Band) que animaria as tropas e o povo americano nos anos seguintes. Pela música e pela morte prematura, sem ter ainda acabado a Segunda Guerra Mundial, fica sempre associado ao war effort e aos valores e à força que tentava dar ao povo americano e às forças aliadas, cruzando mesmo as fronteiras europeias. “America means freedom and there’s no expression of freedom quite so sincere as music”, disse ele uma vez. Em 1954, Anthony Mann fez The Glenn Miller Story, um belo filme com James Stewart no papel de Miller. 

* excerto de «Sergio Sollima depois de Revolver», escrito para a Foco – Revista de Cinema.
* Texto de João Palhares
Nota: os filmes não têm legendas

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sábado, 28 de setembro de 2019

The Shadow Box (The Shadow Box) 1980

Foi há trinta e nove anos que Paul Newman realizou este filme para a televisão que resiste pacientemente a cada nova visualização, com personagens que nos parecem olhar nos olhos e perguntar uma e duas vezes “como é que estás?” ou “o que é que fizeste este último ano?” com a mesma candura e a mesma implacabilidade. Com vinte, trinta, cinquenta, ou sessenta anos. Setenta. Este mês de Agosto, Louis Skorecki parece ter visitado o website letterboxd numa noite de embriaguez cinéfila para qualificar The Shadow Box de “great film” e “best film ever”. Não houve mais actividade. Talvez não seja mentira, permanece um poço sem fundo de emoções, implicações complexas e problemas indecifráveis. É sobre a morte e, portanto, sobre a vida – o que não quer dizer grande coisa nem diz o que quer que seja sobre o filme. Mostra-nos três pacientes terminais interpretados por James Broderick, Christopher Plummer e Sylvia Sidney, rodeados pelas mulheres e ex-mulheres, os amantes que encontraram e os filhos, interpretados por Valerie Harper, Joanne Woodward, Ben Masters, Melinda Dillon e Curtiss Marlowe. Há um médico enquadrado sempre de costas que os entrevista para manter uma espécie de diário de bordo e dar conselhos.
Somos avisados ao princípio de que as gravações são uma experiência televisiva, câmaras ligadas em circuito fechado para um hospital, onde médicos, enfermeiros e alunos assistem às entrevistas. Nós vemos o mesmo. Em 1980, quando não se sabia demais e passavam Paul Newman cineasta na televisão, a coisa podia passar mesmo como a verdadeira experiência, transmitida em directo pela American Broadcasting Company (ABC). A personagem de James Broderick diz que a família vem ter com ele, porque agora já têm dinheiro para o fazer. Nem uma palavra sobre a morte, só uma menção à crença passada de uma melhoria, o que visto pela primeira vez pode passar ao lado como dado insignificante, tal como as palavras sobre o mar e as montanhas. Mais para a frente chegam as perguntas. Porque é que a mulher interpretada por Valerie Harper não consegue entrar em casa com o filho e com o marido? Porque é que dá uma bofetada ao filho quando este a tenta fazer entrar de forma inocente? Não há razão que o explique, naquela família não se fala tão abertamente como no chalé de Christopher Plummer e Sylvia Sidney. Pode-se adivinhar, mas vão ser precisas mais bofetadas, muitas bebedeiras e muita negação até se ter a certeza. Só que quando a revelação chega, com o “I'm going to die, Maggie” de Broderick (um delírio de simplicidade, um delírio puro e simples), não há certezas que nos amparem. Estamos todos em negação.
Pode-se voltar ao início outra vez, somos avisados da experiência, corta para duas televisões, uma enfermeira vai encher a chávena de café e volta, corta outra vez para Broderick. É um beco sem saída. Podemos pensar que é Ben Masters, com a sua seriedade assertiva e bem informada, quem tem as respostas. Uma garrafa de vodka, dez bofetadas, um abraço e uma masterclass de interpretação depois é Joanne Woodward quem dá a volta por cima, mas voltamos ao mesmo. “He always cared about the wrong people”. Uma mulher de setenta anos agarrada à vida por uma mentira da filha, que só quer a morte. A certeza da morte no abstracto não é o mesmo que a notícia, confirmada por médicos e aceite como irreversível pelo paciente, os segundos e os minutos distendem-se só com a aflição e a cisma no prazo de findas. Formalmente, Newman consegue o mesmo com as cenas da família de Broderick, o elo de ligação entre os outros dois residentes (faz-se tudo num plano: Ben Masters passa a correr da direita para a esquerda pela entrada desse chalé, Sylvia Sidney passa de cadeira de rodas na direcção contrária, com a filha). O tempo distende-se até à aceitação, que acelera o processo mas nos devolve a sanidade. “I'm going to die, Maggie”. Passa-se tanto tempo que quando vão dizer ao filho ele já sabe. A revelação não é informativa, mas um empurrão milagroso para a vida, uma alternativa ao limbo ou ao purgatório. Uma saída. 
Outra forma de ver as coisas é aceitar essa revelação como a simples colocação do problema, numa altura em que se costumam dar as resoluções e as morais das histórias – o que por si só é extraordinário – e voltamos aos círculos. Sylvia Sidney pede à filha que lhe leia a carta (escrita por ela mas atribuída à irmã, que já morreu), o último apego da senhora à vida e à realidade. E Melinda Dillon lê a carta, uma e outra vez, já a sabe de cor. Lê-a como se tivesse encontrado um remédio para a morte da mãe à custa da própria vida, de olhos postos no céu estrelado, numa melancolia bem desanimadora. Estamos todos em negação. Não há saída. E não há-de ser por termos cinquenta, sessenta, setenta, oitenta ou noventa anos que vamos ter melhores respostas para as perguntas que este filme nos faz, enquanto olha de frente para algumas das escolhas que fizemos este ano numa tentativa de fugir da morte, mais uma vez, negando a vida. Dirão os iluminados que não são os filmes que mudam, somos nós. Mas não têm em conta as excepções, em que por apatia nossa ou grandiosidade dos filmes, ficamos na mesma enquanto os vemos a mudar. 
“best film ever”.
* texto de João Palhares

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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Concerto per Michelangelo (Concerto per Michelangelo) 1977

Não há cineasta mais inclassificável do que Roberto Rossellini. Quando gozava de todo o prestígio possível e imaginável em Itália depois da trilogia da guerra, no final dos anos quarenta, recebeu uma carta de Ingrid Bergman, provavelmente a maior estrela de Hollywood dessa altura. Apaixonaram-se, tiveram um caso, choveram críticas de todos os lados e Rossellini foi perdendo estatuto dentro da indústria do seu país, mas os filmes que fizeram juntos (de Stromboli a Giovanna d'Arco al rogo) ganharam os favores da crítica francesa e mundial, que lhe caiu aos pés e gritou a plenos pulmões que ele era o mais moderno dos cineastas. Foi para a Índia e trouxe consigo um filme e duas séries de televisão, pouco tempo depois começou a trabalhar quase exclusivamente para esse novo meio e fez A Tomada do Poder por Luis XIV, que segundo Pierre Rissient foi a “traição definitiva” (Jacques Lourcelles escreveu que “a parte essencial da sua obra termina” em La Paura). Séries e mini-séries didácticas, ciência, história, os apóstolos, Sócrates, Blaise Pascal, Santo Agostinho, Cosme de Médici, Leon Battista Alberti, René Descartes, Alcide De Gasperi e Jesus Cristo. Ainda hoje não há consenso em relação a Rossellini, que além disto foi também capaz de realizar uma comédia bem insólita com Totò (Onde Está a Liberdade?) e um filme milagroso em episódios sobre São Francisco que resiste a qualquer descrição, julgamento ou categorização (Francesco, giullare di Dio). Atirava-se para o próximo projecto com uma energia que ninguém conseguia explicar, bem se marimbando para o que pensavam dele.
Concerto per Michelangelo e Beaubourg, centre d'art et de culture Georges Pompidou, ambos de 1977, pareciam iniciar ainda uma nova fase da carreira de Rossellini, que morreu sem conseguir acabar o segundo e nos deixou a adivinhar o que se seguiria, na carreira. Talvez uma expedição com a NASA ou o centro da terra, possivelmente com os zooms geográficos absolutamente cimentados destes dois belos filmes. No seu livro sobre Rossellini, Tag Gallagher despacha Concerto só com um parágrafo, dizendo que “nem a música nem as imagens de Rossellini têm muito que se recomende”. É mentira, são muito recomendáveis. Adriano Aprà pinta outro quadro, mas só o acha “interessante, tanto pelo auto-retrato talvez involuntário que Michelangelo se torna para ele, como pela experiência: o único em que Rossellini intercala cinema e vídeo, ou melhor, gravação electrónica em directo”. Em termos práticos, Concerto parece ter sido uma enorme dor de cabeça, um verdadeiro pesadelo. Havia pouco tempo (parece que foram três dias bem intensos), era uma encomenda quase imposta, e Rossellini já não tinha 20 ou 30 anos. Mas, ainda assim, trepava basílicas e filmava estátuas de telhados, planeava campos-contracampos, narrativas e raccords muitíssimo engenhosos com a grande tela e os grandes colossos da Capela Sistina e do Palácio Apostólico, num processo semelhante ao de Michelangelo Antonioni na belíssima curta Lo sguardo di Michelangelo, que também acabou por ser o penúltimo filme desse cineasta, dessa feita na igreja San Pietro in Vincoli e com a majestade de Moisés sob os seus olhos húmidos, mas quase trinta anos depois. Só que para contrariar os testamentários culturais, não foi com o grande artista que ambos se identificaram, mas com o homem católico que se auto-retratou como farrapo humano no seu fresco do Juízo Final e disse que “no mi resta a fare altro, poi, e poi tornarme a Firenze com animo di riposarme com la morte, com la quale dia e notte cierco di domesticarme, a cio che no me trati pieggio che gli altre viecchi”.
“Vimo-lo ocupado neste seu último trabalho,” escreveu Virgilio Fantuzzi sobre Rossellini, “seguimo-lo enquanto subia e descia as centenas de degraus que ligam o chão da Basílica Vaticana à Cúpula, enquanto entrava nos túneis das Grutas Sagradas e discutia nos escritórios para solidificar as licenças necessárias, renunciava à pausa do meio-dia para correr de carro até à outra parte da cidade onde o aguardavam novos compromissos, e passava a noite inteira na moviola para completar a montagem em tempo record.
“Falava da morte com frequência; sabia que viria de repente, que o iria apanhar nos planos do seu trabalho. Falámos longamente da morte no nosso último encontro; era ele a trazer a conversa para este tópico com tons diferentes, mas sempre com grande serenidade: ora brincando, como fazia frequentemente, com aquela sagacidade que nunca o abandonou, ora com um tom compreensivo e meditativo, como aconteceu connosco quando percorremos juntos alguns versos de Buonarroti:

  « Giunto è già il corso della vita mia
  per procelloso mar su fragil barca
  al comun porto ove a render si varca
  conto e ragion d'ogni opra trista e pia […].
  Né pinger né scolpir fia più che quieti 
  l'anima volta a quell'amor divino 
  ch'aperse, a prender noi, 'n croce le braccia. » 

  Buonarroti é Michelangelo.

* texto de João Palhares.
Filme sem legendas.

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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Le Avventure di Pinocchio (Le Avventure di Pinocchio) 1972

Os segredos da infância são insondáveis. Sem filtros, as crianças são capazes da maior inocência e das maiores safadezas, quase sempre com uma piada tão desarmante que os adultos não sabem que lhes fazer. Podem arrastar os pais até às montras de uma pastelaria, gritar “ó mãe, dá m'um booolo”, pôr a boca no vidro e começar a chuchar ao desbarato. Atravessar uma passadeira de mão dada a uma tia ou à avó e fazer sinal de paragem aos carros, com a mão direita bem esticada e decidida. Fazer os dias a quem passa e os vê com gestos simples destes. Para além disso, dizem ter amigos imaginários que os convencem a fazer asneiras, para o que se arranjaram as mais variadas explicações, e que vão desde a hipótese da matreirice pura à da maior abertura deles em comunicar com fantasmas e com o mundo dos mortos. E há também poucas coisas tão belas e tão comoventes como o laço que uma criança consegue criar com um animal, por si só um filão literário e cinematográfico e que nos eleva às alturas do Livro da Selva (1894) de Rudyard Kipling, Banjo (1947) de Richard Fleischer ou Good-bye, My Lady (1956) de William Wellman.
Também é uma idade impressionável e de transição, e por isso se tentam impor os limites e as linhas vermelhas que os hão-de preparar para a vida em sociedade, embora haja ainda muito desacordo entre pais, educadores e psicólogos sobre as melhores formas de o fazer, que mudam constantemente e consoante as modas e os tempos. Agostinho da Silva não esteve com meias medidas quando disse a Manuel António Pina que “o ideal era que morrêssemos jovens, que morrêssemos crianças...”, “mas são raros aqueles que conseguem”, “eu costumo brincar com a palavra 'adulto' com uma etimologia falsa, dizendo que o que acontece com as crianças quando chegam aos catorze, quinze anos, cortam-nas, fazem-nas parar e juntam-lhe outro bocado de um adulto. De onde vem o verbo 'adulterar'. Quer dizer, toda a criança é adulterada por um adulto.” Finalmente, foi através da ilustração destas tensões que apareceram Lewis Carroll com o seu Alice no País das Maravilhas (1865), James Matthew Barrie com Peter Pan (1904), ou Carlo Collodi com As Aventuras de Pinóquio (1883), transformando-as quase inadvertidamente (e sobretudo no caso do italiano) em mitos fundadores, questões eternas.
Luigi Comencini sempre se interessou muito pela infância como terreno para a ficção, basta citar títulos de alguns filmes e séries de televisão que realizou, como Bambini in città (1947), Heidi (1952), Infanzia, vocazione e prime esperienze di Giacomo Casanova, veneziano (1969), “I bambini e noi” (1970) “Cuore” (1984) ou O Rapaz da Calábria (1987), e lembrar a sua fabulosa primeira longa-metragem, Proibito rubare (1948), interpretada maioritariamente por crianças napolitanas que não viviam em melhores condições do que as personagens que encarnavam – miúdos abandonados pela cidade e pelos próprios pais. Sem conhecerem outra realidade que não a delinquência, e transformando os bandidos e os marginais para quem faziam uns biscates nas suas figuras paternas, reagiam de forma insolente e desconfiada à bondade e ingenuidade extremas do padre que os queria receber e re-introduzir na sociedade, Don Pietro. O que é surpreendente no filme, personificado pela presença discreta e silenciosa de Peppinello, um dos miúdos acolhidos pelo clérigo, é a transição suave que se dá dentro das crianças e nos seus termos à medida que se vão habituando a Don Pietro. O lar que ele queria criar para elas não cresce como o esperado, têm dívidas espalhadas por toda a cidade. E a razão por que a maior parte delas se tinha lá metido era para esconder e vigiar um saque de relógios de ouro, que um dos delinquentes lhes tinha confiado até sair da prisão. Peppinello decide então vender os relógios e meter o dinheiro na caixa de esmolas de Don Pietro – às prestações, para não levantar muitas suspeitas – sem querer nada para si próprio. Que isto nos pareça a única solução possível, independentemente do que pessoalmente achemos certo ou errado, deve-se ao talento extraordinário de Comencini em nos fazer entrar naquele mundo sem reservas, despertar a criança que já fomos e que lutava contra a injustiça da forma mais desconcertante possível, em dirigir miúdos não profissionais com a crença de que “as crianças brincam enquanto rodam um filme. Aqueles americanos que contratam psicólogos para os fazer representar ou para reparar eventuais danos causados pelo trabalho no cinema são loucos. É só preciso deixá-las brincar, e não é verdade que falhem quando estão a representar. (...) Um realizador deve saber que uma criança não é um bom actor: uma criança existe, e chega.” 
“Le avventure di Pinocchio” é outro tratado. Feito depois da série documental “I bambini e noi”, em que Comencini teve a oportunidade de viajar por Itália a entrevistar mães, pais, filhos e filhas de todas as classes sociais sobre as suas situações e as suas vidas, subverte admiravelmente a moral pesada do livro de Collodi. Se a versão de Walt Disney e dos seus artesãos talentosos modifica consideravelmente a história (no livro, por exemplo, o Grilo Falante faz apenas duas pequenas aparições, não é personagem de relevo mas um dos muitos membros do séquito de animais da Fada, que tem uma importância muito maior do que na versão animada), mantendo-se fiel ao espírito (se as crianças se portarem bem e forem bem-educadas, são recompensadas), a série de Comencini percorre praticamente todos os episódios (mantendo todas as personagens, do Mestre Cereja à Caracoleta, mas alterando a condição de marioneta da personagem principal, que se vai transformando em menino verdadeiro ou marioneta dependendo de como se porta e em que apuros se encontra), invertendo consideravelmente o espírito do livro de Collodi ao eliminar o epílogo (em que se revêem o Gato, a Raposa, o Grilo Falante e Palito, e em que Pinóquio se redime socialmente acordando cedo todos os dias e acreditando piamente que há pessoas que merecem ser pobres), tomando o ponto de vista e o lado de Pinóquio e transformando as suas aventuras numa meditação comoventíssima sobre a miséria e a solidão. Aqui não há “adulteração” e as crianças podem acrescentar algo ao mundo sem deixarem de ser crianças, sem deixarem de ser impulsivas e teimosas, por quererem mais do que comida na mesa ou rotinas e regras para seguir religiosamente em troca de salários miseráveis e noites mal dormidas. Mas não é um equilíbrio fácil, e dói ver Pinóquio a usar as ferramentas e a cadeira de Gepeto como lenha para a lareira, no primeiro episódio, ou Gepeto a descascar pêras ao filho depois de vir da prisão sem que este deixe ao pai o que quer que seja, no segundo episódio. Mas como em Proibito rubare, a transformação é bem suave e modular, porque Pinóquio aprende a fazer o bem sem ter de abdicar dos seus impulsos, passando os restantes episódios a procurar o pai depois de se separarem, tal como Gepeto o procura a ele. E aceitam-se um ao outro dentro do estômago de uma baleia por fazerem esse percurso. Um aprende que as aventuras também fazem parte da vida, o outro que pai há só um. E nós, que podendo não haver remédio imediato para a miséria, há pelo menos para a solidão.
* Texto do João Palhares
Legendas em inglês.

Parte 1
Parte 2
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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Le Petit Théâtre de Jean Renoir (Le Petit Théâtre de Jean Renoir) 1970

Dizem-nos os créditos finais que o “pequeno teatro” de Jean Renoir foi concebido em Veneza com Giulio Macchi, assistente de realização de Renoir e co-argumentista de Le carrosse d'or mais conhecido talvez por introduzir os documentários de divulgação científica na grelha de programação da RAI, nos anos 60. O filme de Renoir é constituído por quatro segmentos, “Le Dernier Réveillon”, “La cireuse électrique”, “Quand l'amour meurt” e “Le Roi d'Yvetot”, sendo este último o mais debatido e elogiado, “tamanha é a sua força e a sua grandeza que o espectador quando sai da sala em mais nada pensa,” como escreveu João Bénard da Costa na sua folha de sala sobre o filme. “Ou seja”, continuava ele, “é legítimo dizer, como Rohmer disse, que “Le Roi d'Yvetot” é o mais belo filme de Renoir, como se essa obra existisse per se e não como “parte” de Le Petit Théâtre,”. Mas não é por acaso que esse episódio é o último, porque “quando pensamos no filme como um todo (…) reparamos na rima perfeita. Essa história – ou anedota, como Renoir chama a todas – rima com as outras e as completa.”
Nos chamados filmes em sketches ou episódios, é-nos concedida a liberdade de escolher um como preferido, o que é perfeitamente legítimo quando são de vários realizadores, ou quando são pensados de forma independente e lamentavelmente aleatória (como no caso dos irmãos Coen em The Ballad of Buster Scruggs, cujo primeiro episódio quase faz com que se apeteça largar o filme e cujo quarto quase redime toda a empreitada), mas não no caso de um cineasta como Renoir e não no caso de um filme como Le petit théâtre, com uma progressão dramática por acaso estruturada em episódios. Assim, o “pequeno teatro” de Jean Renoir justifica-se quase simplesmente no título, que antevê um mergulho no seu inconsciente e nas suas histórias e afinidades electivas, tendo-o como anfitrião para por eles guiar as pessoas. No início, a homenagem a Hans Christian Andersen, seu colaborador involuntário, e que já tinha adaptado em La petite marchande d'allumettes, não por acaso também no início da carreira. Depois, uma ópera moderna sobre uma mulher, a sua enceradora eléctrica e os dois maridos. Uma comédia de enganos e costumes dos anos 30. 
Avareza e doçura, tragédias e sorrisos, sardonismo, arrependimento, morte e cegueira e, na encruzilhada das ficções, levanta-se o pano para a aparição de Jeanne Moreau, que nos olha nos olhos até termos de desviar o olhar e nos pergunta “lorsque tout est fini / quand se meurt votre beau rêve / pourquoi pleurer les jours enfouis, / regretter les songes partis?” A câmara aproxima-se com cautela naquele que é um dos mais belos planos de Renoir e a voz hesitante e comovente de Moreau começa a conseguir vislumbrar um mundo em que é possível não se guardar rancor nem querer vingança ou reparar supostos atentados à honra, lamentar amores ou oportunidades perdidos, olhar para alguém com inveja ou violência. Até parece fácil. Sem revelar demasiado sobre a suprema revelação do último episódio, com um travelling sublime e transfigurador virado para os céus, entre outras maravilhas semelhantes, diga-se que tal revelação não era possível sem a fome e a melancolia dos vagabundos de Nino Formicola e Milly, a neurose cómica da Émillie de Marguerite Cassan, ou a interrogação meio desamparada meio esperançosa de Jeanne Moreau, com direito a um truque de magia antes de um milagre: Renoir atira uma bola pelo seu pequeno teatro fora até esta entrar no grande teatro da vida e despede-se de nós com um sorriso desenhado com a tinta, o pincel e a sabedoria dos seus setenta e cinco anos. 
* texto de João Palhares

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Louis Lumière (Louis Lumière) 1968

Devido à existência de várias versões das chamadas “vistas cinematográficas” dos irmãos Lumière e devido às grandes diferenças entre elas, aliadas às cronologias estabelecidas pelos historiadores para encontrar as versões oficiais das mesmas, às vezes delineadas por meras flutuações no clima registadas na altura, a idade dos intervenientes nas imagens dos Lumière ou pequenos apontamentos em artigos dos jornais da época, tornou-se imperativo apelidar os Lumière de cineastas e deixar de repetir a história dos técnicos ingénuos que fizeram curiosidades históricas, simples documentos da viragem do século. O assombro causado por muitas das curtas dos Lumière é um efeito a que eles não eram de todo inconscientes, porque reparavam erros durante a captação das suas “vistas”, intuitivamente, e na procura desse mesmo efeito. As correcções feitas a La sortie de l’usine Lumière à Lyon (nas três versões que se conhecem) são por isso reveladoras: nas primeiras duas versões, os trabalhadores levam muito tempo a sair da fábrica e as carroças puxadas a cavalo atrapalham-lhes os movimentos, por isso Louis Lumière decidiu retirar a carroça totalmente e apressar os seus trabalhadores, conseguindo a fluidez e a ideia de início e de fim (aqui marcadas pelo abrir e fechar dos portões) que estão presentes em tantas das suas curtas.
“Quando se olha com muita atenção para os filmes de Lumière”, diz Langlois neste filme, depois de Rohmer ter dito que não havia mise en scène nos filmes dos irmãos, “parecem muito espontâneos, que só puseram as câmaras na rua e que é a rua a desfilar, e se é bom, se nos impressiona, dizemos que foi sorte. Mas não é sorte, porque há planos dos Lumière que são evidentes. Por exemplo, quando se vê num filme de Louis Lumière – e isto é uma questão de tempo, temos um filme e ele dura tanto e o plano dura outro tanto – mas por exemplo, o filme começa com um eléctrico que entra em plano pela direita, depois há uma série de movimentos, e acaba com outro eléctrico que entra em plano pela esquerda. Acha que é sorte? Não é sorte, de todo. Eles procuraram locais, eles viram como é que as coisas se passavam durante algum tempo, escolheram o melhor ângulo e conseguiram a coisa mais extraordinária (e que costumamos esquecer) que foi inserir na imagem, durante esses poucos segundos, o máximo de planos, sem mudar o lugar da câmara. Temos o grande plano, o plano médio, o plano americano e temos o plano de conjunto com um movimento que os liga a todos. E isso não é sorte. É ciência.” 
É a partir deste momento que o que achávamos ir ser só uma conversa com belos testemunhos, um mero registo de uma conversa feito para a televisão, se transforma no equivalente cinematográfico para a obra de Platão ou de Xenofonte, filósofos gregos que documentaram não só a existência como o pensamento de Sócrates, o mais famoso dos filósofos. Tal como Renoir e Langlois dão testemunho do génio de Lumière e tal como Rohmer documenta o pensamento de Langlois. Louis Lumière, o filme, o episódio da série «Aller au cinéma», como lhe quiserem chamar, faz-nos ver a fragilidade dos meios que albergam o conhecimento, das dificuldades físicas da sua transmissão, das barreiras temporais e das circunstâncias que se batem com ele de forma impiedosa e tantas vezes nos conseguiram impedir de lhe aceder. Podíamos ter perdido Sócrates, podíamos ter perdido Lumière e perdemos muita coisa, sem dúvida, do incêndio de Alexandria à chegada do cinema sonoro aos Estados Unidos da América, que condenou 90% do cinema mudo à destruição. Langlois, que com Lotte Eisner salvou centenas de bobines durante o flagelo da segunda Guerra Mundial, sabe do que fala quando menciona essa fragilidade, ainda muito real. Como quando descreve feitos que ainda não eram conceitos, por parte dos operadores dos Lumière, ou quando descreve o cinema como o objectivo e a meta do impressionismo. 
É pelas palavras de Langlois que as curtas ou “vistas” dos Lumière se vão transformando em cinema à frente dos nossos olhos, numa viagem de descobertas infindáveis, um caleidoscópio ilimitado que contém toda a gramática do cinema. Rohmer terá percebido isso durante a fase da montagem (crença minha) e o cepticismo inicial deu lugar à fé absoluta, seleccionando a melhor ordem de imagens para nos causar essa sensação maravilhosa de descoberta, sem dúvida semelhante à sua: dos primeiros movimentos em diagonal (ou em triângulo, como diz Langlois) à abstracção pura dos aquários inundados de luz e das imersões na escuridão de túneis que testam os limites da sensibilidade dos obturadores. E se o melhor filme de Éric Rohmer é uma pequena conversa feita para a televisão em 1968? Cinema são sons e imagens, orquestrados para produzir um efeito, mil sensações. Grande parte das vezes (para não dizer sempre, que não é isso que nos toca, é o jogo que isso potencia) não são precisos heróis nem vilões, suspensões da descrença, três actos ou morais da história, basta uma câmara apontada a um homem que não para de fumar e que fala do que gosta. Depois mostra-se do que é que ele gosta e na acepção dos russos cria-se essa terceira imagem que nos deixa atónitos e em busca de palavras para a descrever (os tratados imersivos e utópicos de Eisenstein, os aforismos em formas de perguntas de Jean-Luc Godard). O concreto e o material do cinema entram no domínio do metafísico, no mundo invisível que perfaz os sonhos e o conhecimento e nos ajuda a reagir ao mundo visível e material. Que é como quem diz, dos Lumière para esta sala.
Texto do João Palhares, daqui

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sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Il processo di Santa Teresa del bambino Gesù (Il processo di Santa Teresa del bambino Gesù) 1967

Vittorio Cottafavi estreou-se na televisão em 1957, com o filme fabuloso que é Sette Piccole Croci, baseado em Sept petites croix dans un carnet de Georges Simenon e transmitido em directo na RAI a 25 de Março desse ano. Sempre dentro do mesmo espaço, o trabalho dos actores e da câmara confundiam-se exemplarmente com o reboliço e o pânico dessa noite fictícia na esquadra, com os “pronto” enfáticos e violentos de Ivo Garrani que pautam a banda-sonora a exprimir exasperação nas tentativas dele em encontrar o sobrinho ou então em levar a cena para a frente, sem erros, e depois com uma pausa tão silenciosa que chega a doer, depois de um telefonema e um monólogo particularmente intensos. “Como era a minha primeira transmissão,” conta Cottafavi, “só me deram duas câmaras com duas dollies: pensavam que, como eu vinha do cinema, quanto menos câmaras tivesse, mais confortável me ia sentir. Quando, na verdade, o trabalho é muito mais simples com três câmaras do que com duas. Realizei a transmissão em planos-sequência, que se usavam muito naqueles anos. Mas usei a segunda câmara para realizar planos de inserção que se intercalavam aos planos-sequência com um ritmo muito serrado.”
A partir daí, trabalha quase exclusivamente para a televisão, fazendo entre séries e filmes televisivos A Revolta dos Gladiadores (1958), Le legioni di Cleopatra (1959), Messalina Venere imperatrice (1960), A Vingança de Hércules (1960), Ercole alla conquista di Atlantide (1961) e I cento cavalieri (1964), o seu último trabalho feito para cinema. É por esta altura que é resgatado pelos franceses, sobretudo a partir do mítico nono número da Présence du Cinéma (é a partir desse número que vão chegando à revista Alfred Eibel, Michel Mourlet, Marc C. Bernard, Jacques Lourcelles, Jacques Saada e Pierre Rissient) dedicado ao cineasta em 1961. Apesar disso, continua a ser um realizador muito pouco exibido e editado, acessível apenas em gravações rudimentares disponíveis por tempo incerto no YouTube ou partilhadas em algumas comunidades de torrents secretas o suficiente para poderem continuar a fazer serviço público (como faz o Francisco Rocha neste blog), disponibilizando às vezes também legendas, além dos filmes. Era possível escrever todo um tratado sobre a importância de vários rippers, uploaders ou tradutores, entre os quais se contam críticos e historiadores bem conhecidos, para a cinefilia do século XXI, e que tornaram visíveis as filmografias de Manuel Mur Oti, Edward Ludwig, Riccardo Freda, Hugo Fregonese, Allan Dwan, Edgar G. Ulmer, Paulo Rocha, John Flynn ou Paul Newman, enquanto no chamado mundo real se discutia se a Netflix era ou não funesta para o cinema.
Cottafavi realizou mais de cinquenta séries ou telefilmes para a RAI, perdendo-se já alguns, num período de quase trinta anos em que a estação italiana recebeu Roberto Rossellini, Ermanno Olmi, Luigi Comencini, Vittorio De Seta ou Sergio Sollima para levarem a cabo projectos que, de outra forma, não se faziam. Entre encenações de Molière, Henrik Ibsen, Sófocles, Tennessee Williams, García Lorca, Luigi Pirandello, Shakespeare, Lillian Hellman, Eurípedes, Eugène Ionesc e, Ésquilo, adaptações de Dostoievski, Victor Hugo, Leo Tolstoi, Alexandre Dumas, Joseph Conrad ou Cesare Pavese, ficção científica, biografias de Napoleão, Colombo, Dante ou Oliver Cromwell, óperas e policiais, realizou Il processo di Santa Teresa del bambino Gesù, belíssima indagação sobre a fé e a santidade. O cenário austero, a grade imponente que separa os interrogadores das interrogadas e até os óculos escuros do promotor da fé permitem a Cottafavi construir jogos de escalas e peças de tensão e revelação verdadeiramente fascinantes. Através de monólogos intimistas, com uma câmara encantada pelos olhares e pelos rituais das suas personagens, começa-se a vislumbrar aos poucos essa bondade simples e enigmática descrita por Henry King em A Canção de Bernadette e Roberto Rossellini em Francesco, giullare di Dio.
Foram poucas as pessoas que se prestaram à chacota e ao ridículo sem pensar nas consequências, modas ou linhas vermelhas das respectivas épocas. Pedir desculpa por ser insultado ou estar apenas presente parece sinal de fraqueza ou idiotice, mas a simplicidade de um homem como o irmão Junípero da História e do filme de Rossellini é desarmante. O filme de Vittorio Cottafavi descreve esse efeito nos outros, nas testemunhas que viram o pior de si mesmas diante dessas pessoas sinceras e humildes que viram sempre como inferiores e de quem fizeram sempre chacota até perceberem que era o contrário que era verdade. Um plano geral com um leve contra-picado de um inquisidor atrás de uma grade imensa, pode mexer nos óculos escuros, baixar o olhar, repetir palavras com outra entoação em busca de respostas; um grande plano de uma mulher sentada e doente a expurgar os pecados com a confissão, com lágrimas nos olhos – cinema.
Legendas em inglês.
*Texto de João Palhares

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quinta-feira, 19 de setembro de 2019

The Twilight Zone - The Masks (The Masks) 1964

Robert Parrish, Mitchell Leisen, John Brahm, Stuart Rosenberg, Joseph M. Newman, Don Weis, Richard C. Sarafian, Don Siegel e Jacques Tourneur foram alguns dos cineastas que trabalharam com Rod Serling em “The Twilight Zone”. A série parece ter nascido da frustração de Serling para com os cortes que as cadeias de televisão e os seus patrocinadores faziam constantemente aos seus projectos. Virou-se então na direcção do fantástico e da ficção científica para conseguir falar sobre os tempos em que vivia sem ter de fazer grandes concessões. Os temas eram possíveis graças ao género; o mergulho no género concedia-lhes a universalidade. 
Ida Lupino realizou seis filmes de uma assentada entre 1949 e 1953, o tempo que durou a sua companhia cinematográfica, The Filmmakers, começando a trabalhar para a televisão como realizadora em 1956, com um episódio de “On Trial” (The Trial of Marry Surratt), e acumulando uns impressionantes 67 créditos até 1968. Pode-se tentar desabonar estes trabalhos, dizendo que eram feitos de forma demasiado rápida, que a televisão é um meio que privilegia os argumentistas e os produtores, demasiado formatado para que o realizador possa fazer mais que não seja ilustrar o que está escrito, mas Ida Lupino sempre teve de fazer os seus filmes bem rápido, não tinha dinheiro para os fazer devagar, e se nos deslocarmos aos tempos em que as companhias e os produtores a punham suspensa por não querer interpretar certos papéis (foi assim que aprendeu os ossos do ofício, aproveitando esse tempo livre para falar com realizadores, operadores de câmara e directores de fotografia) podemos presumir que Lupino só aceitava os trabalhos que queria mesmo fazer. 
Com certeza que terá sido esse o caso para The Masks, o episódio que realizou para a “Twilight Zone”, escrito pelo próprio Rod Serling. Passado no Carnaval, faz-nos entrar na última noite de um patriarca neste mundo, rodeado pelos familiares esfomeados já há muito tempo pela sua herança. As máscaras do título, toda a progressão da história e particularmente esses momentos de máscaras imóveis enquadradas em toda a sua estranheza enquanto se ouvem as agonias e as sentenças das várias personagens, reenviam-nos para essa sensação dionisíaca de que somos nós próprios apenas com máscaras, escondidos, seguros e justificados para darmos largas a desejos e vontades soterradas numa só noite de gatos pardos ou de cães à solta. O Carnaval de uma vida, até à morte, e que traz as consequências devidas. Ou não estivéssemos na “Quinta Dimensão”.
Texto do João Palhares.

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terça-feira, 17 de setembro de 2019

The Twilight Zone - Night Call (Night Call) 1964

Há quem acredite em Deus, nos anjos e no Paraíso, como há quem os substitua por outras coisas, concedendo-lhes a mesma santidade e o mesmo relevo. Há quem diga que pensou todo o dia em nós quando aparecemos por acaso e depois de muito tempo sem dar notícias, como se o universo os estivesse a tentar avisar do acontecimento antes da ocasião. Há quem confie mais nas energias do que na ciência, que às vezes dá pessoas como mortas e não consegue processar em termos lógicos a persistência delas em sobreviver. Há quem se pacifique com a morte de quem lhe era próximo com sonhos estranhos em que o inconsciente, por mais misterioso e profundo que seja, não parece ser o único agente em acção. Há coincidências ou sinais inexplicáveis que nos compelem a tomar certas acções, fazendo-nos duvidar do livre-arbítrio envolvido mesmo no processo.
Jacques Tourneur podia ser uma figura muito elíptica e elusiva dentro de Hollywood, mas não tão elíptica e elusiva que não nos tenha deixado algumas pistas sobre as suas filosofias de trabalho e de vida. “Eu faço filmes sobre o sobrenatural,” disse ele a Bertrand Tavernier em 1970, “e faço-os porque acredito nele. Acredito no poder dos mortos, em feiticeiros. Conheci de resto alguns quando estava a preparar A Noite do Demónio. Discuti com a mais velha feiticeira inglesa. Falámos muito tempo sobre o mundo dos espíritos, do poder dos gatos. Também visitei casas assombradas... Eu próprio possuo certos poderes. Acontece-me sentir que vou ver em breve um amigo que perdi de vista há muito tempo. Rabisco o nome dele num pedaço de papel. Umas horas depois tocam à porta e é ele. E eu mostro-lhe o papel onde coloquei o nome dele diante de uma testemunha... Também sei que existem universos paralelos ao nosso. Escrevi todo um argumento depois disso que se chama Whispers in a Distant Corridor. É sobre a luta entre todos os dispositivos técnicos mais avançados, os computadores mais modernos e o mundo dos mortos que tenta entrar em contacto connosco. Esse mundo que é muito mais poderoso do que o nosso. Fala-se sempre do problema das minorias. Nós, os vivos, somos uma verdadeira minoria face aos mortos... Mas é exasperante que se apresentem sempre estes poderes sobrenaturais como forças maléficas. Porquê este racismo? Se elas existissem e fossem maléficas, há muito que tínhamos sido varridos...”
Night Call, centésimo trigésimo nono episódio da fabulosa série criada por Rod Serling no final dos anos 50, “The Twilight Zone” (“A Quinta Dimensão” em Portugal), parece ser a representação perfeita desse tal mal-entendido dos “poderes sobrenaturais como forças maléficas” e uma das concretizações possíveis de Whispers in a Distant Corridor. Nele, Gladys Cooper interpreta Elva Keene, uma mulher que é assediada por telefonemas constantes de origem desconhecida. Houve uma tempestade eléctrica, o fio telefónico foi cortado, e as chamadas nocturnas não têm explicação aparente. É esse o ponto de partida, mas a câmara de Tourneur e os toques de telefone que rasgam como punhais o silêncio da noite (controlados sem dúvida alguma pelo realizador, que confessou seguir “sempre de muito perto a sincronização e a montagem sonora dos meus filmes”), conduzem a coisa muito gradualmente para os domínios do extraordinário.
Nos tempos da RKO, desligavam-se os projectores entre cenas nas rodagens do realizador francês, permanecendo ligados candeeiros ou fontes luminosas menos intensas e agressivas para os intérpretes. Os actores eram convidados a ensaiar os diálogos e moviam-se assim de forma diferente, na direcção da luz, falavam mais baixo por estarem quase às escuras, tornando a cena muito mais interessante. Tourneur anotava-lhes os movimentos e os discursos e tentava preservar tudo isso quando depois filmava. Em Night Call, quando a personagem de Gladys Cooper segue o conselho da criada e tira o auscultador do descanso, o sinal de interrompido não a deixa dormir. Põe roupa à volta do auscultador e consegue abafar o som, mas a noite silenciosa deixa-se invadir pela nota constante do sinal, que volta a encher as sombras do quarto apagado e a testar-lhe a paciência. Quando decide voltar a pousar o auscultador, a violência do toque de telefone parece voltar redobrada, não se sabe se por estar mesmo mais alto se pela modulação exemplar da cena. 
Depois de se descobrir a verdadeira natureza destas chamadas, passados os muitos “hello” ora sinistros ora inocentes de quem telefona, dadas respostas vagas e reacções incrédulas às queixas e receios da Sra. Keene, recebidos toques e sinais, avanços e recuos que demonstram concisamente o processo telefónico e as pessoas que o operam, dá-se a grande revelação e já se quer acreditar. Mas é tarde demais. Pode-se terminar aceitando como Pascal (e como Tourneur) que “se submetermos tudo à razão a nossa religião fica sem nada de misterioso ou sobrenatural. Se ofendermos os princípios da razão a nossa religião será absurda e ridícula. Há dois extremos igualmente perigosos: excluir a razão e não admitir nada senão a razão.” 
Texto do João Palhares

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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

The Westerner (Série de TV) 1960

"Sam Peckinpah pode ser conhecido principalmente pelo seu temperamento dito impossível, pelo seu alcoolismo selvagem e pelos seus filmes violentos e desintegrados. Mas como é que os filmes podiam ser apenas o resultado da sua impetuosidade e do seu mau feitio, regados ou não a álcool? Há mil estórias de desentendimentos com produtores, de estadias muito demoradas no México, entre o paraíso e o inferno, pequenos-almoços a consistir de whisky e sardinhas, as três da tarde como hora da transição entre a sobriedade (ou a bebedeira funcional) e a desarticulação absoluta, os soros etílicos e as aventuras funestas com drogas mais pesadas no final da vida. Portanto talvez seja inimaginável para alguns que fosse um leitor ávido de Shakespeare, Dickens, Thoreau, Eurípedes, Aristóteles, ou os mais variados livros de história, da China ao Insurgent Mexico de John Reed (que formou as bases de Major Dundee, Quadrilha Selvagem e Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia), e que tivesse começado no teatro, com Tennesse Williams como influência suprema, encenando também peças de Luigi Pirandello ou William Saroyan.
“Não sou um anti-intelectual,” disse Peckinpah à Playboy, “mas sou contra os pseudo-intelectuais que escorregam na diarreia verbal deles como cães e lhe chamam propósito e identidade. Um intelectual que incorpore o seu intelecto em acção é um ser humano completo.” Podem ser outras palavras para trabalho, que nem no caso de Peckinpah nem no caso de quem quer que seja sai despejado em três tempos e sem algum método e muita disciplina. No caso do americano, a descoberta desse método deu-se com a adaptação escrita que teve de fazer para a encenação de The Glass Menagerie, de Williams, sacrilégio necessário e revelador que o fez perceber que se saía melhor a re-trabalhar as obras dos outros do que a escrever textos originais por si próprio. O método alargava-se ao que fazia com os cenários que mandava encher de adereços e depois retalhava sem misericórdia e com a quantidade de cobertura que fazia chegar à sala de montagem para cortar mais tarde em sequências fabulosas: o massacre da Quadrilha Selvagem, o genérico de Pat Garrett & Billy the Kid, as batalhas sonhadas de Cross of Iron, etc, etc.
O que as carreiras de cineastas como Sam Peckinpah sempre revelaram foi uma falha crassa no sistema americano de fazer filmes, essa ideia abstracta (que provoca sempre problemas tão concretos) do que é um filme bem sucedido. O dinheiro, para não estar com grandes rodeios. Não se sabe se foi a brincar ou a falar a sério, mas pode-se adivinhar, que Peckinpah disse que aquilo por que passou para fazer filmes com orçamentos de milhões de dólares foi pior que a experiência na Segunda Guerra Mundial. Fora os feitios, fora as ameaças e fora o álcool, fora as condições não medicadas e a solidão a que se submetia voluntariamente (a parte auto-destrutiva do processo, e que pode abarcar as alturas de “eu vou ser o maior filho-da-puta” e os abatimentos de “eu sou o filho-da-puta número um”) era porque se importava. Foi por isso que assaltou o arquivo da Metro-Goldwyn-Mayer e pegou nos negativos de Pat Garrett & Billy the Kid, a única razão por que hoje o podemos ver em mais do que uma versão. Fê-lo porque sabia o que era a gratificação de um trabalho bem feito, quais as escolhas certas entre centenas de horas de material filmado, a serenidade de uma rodagem em que o dinheiro, os egos e o tempo não fossem uma questão, a recordação dos gabinetes e dos estúdios que o actor e produtor Dick Powell lhe cedeu para dar largas ao seu talento no final dos anos 50.
A produção de “The Westerner”, série de treze episódios emitida pela NBC no final do ano de 1960, foi um deleite absoluto e quase inédito para Peckinpah. Foi aí que conheceu Lucien Ballard, Julio Corona, Chris Carter, Victor Izay, Michael Mikler, Dub Taylor, Warren Oates (já tinha conhecido Slim Pickens, R.G. Armstrong e Katy Jurado, que também aparecem nesta série nos seus respectivos episódios, Line Camp, School Days e Ghost of a Chance) e sobretudo Brian Keith, com quem assentou desde o início tentar homenagear os cowboys perdidos mas cheios de sonhos e esperanças para as suas vidas – sempre com a ideia da família e de uma casa, todas as noites nos copos e em bordéis, gastando salários de um mês de trabalho no duro numa noite de prazeres fugazes – que ambos conheciam desde muito jovens na personagem de Dave Blassingame. “Blassingame” era o nome de um desses homens que Keith conheceu, “David” era o nome do pai de Peckinpah, como do próprio Peckinpah e de um seu sobrinho. 
A primeira coisa a saltar bem à vista em “The Westerner” é a liberdade de desobediência a um formato que seja, quase sem personagens secundárias recorrentes e sem espaços reconhecíveis de episódio para episódio. Dave Blassingame e o seu cão, Brown, animal pouco prestável mas que funciona quase como a consciência de Dave (como no episódio passado quase inteiramente no deserto, Treasure, em que os recuos de Brown face ao calor entre a fronteira dos Estados Unidos e do México emocionam a personagem de Keith e o acabam por convencer a voltar para trás, impedindo-o de cometer um erro irreversível), percorrem o Oeste em busca de trabalho, dinheiro, pão, amor, educação, aventuras, uma bebida, uma noite de diversão, justiça, um tecto, um abrigo da tempestade, e saem quase sempre de mãos a abanar. Porque pelo caminho encontram homens e mulheres que querem o mesmo, estejam presos a uma relação de dependência coagida (Jeff), queiram companhia e não saibam como o fazer (School Days), cobicem um cão que já tem dono (Brown), sintam-se afastados do mundo, presos a um casamento sem as comodidades da alta sociedade, e façam de tudo para escapar (Mrs. Kennedy), estejam fartos da violência de todos os dias (Dos Pinos), cobicem a mesma mulher que o amigo (The Courting of Libby), queiram ouro abandonado e sem dono (Treasure) ou a herança de um familiar distante que está às portas da morte (The Old Man), tenham saudades dos pais, dos filhos e dos maridos (Ghost of a Chance), tentem provar que são homens (Line Camp, Hand on the Gun), enterrar quem amam (Going Home) ou vender um quadro comprometedor (The Painting). 
Sabe-se que o filme preferido de Sam Peckinpah entre os catorze que realizou é The Ballad of Cable Hogue, elogio em tom maior aos últimos desbravadores de fronteiras, o que volta a baralhar as contas quando se tenta entender o homem a quem puseram o nome de “Bloody Sam”. Podem-se lembrar os sorrisos envergonhados de Dave Blassingame quando conhece as mulheres por quem se apaixona à primeira vista, arranjando-se e perfumando-se para as escoltar rua acima ou rua abaixo sem pedir algo em troca. Os ataques de violência que atravessam a obra de Peckinpah talvez sejam todos uma tentativa desesperada em encontrar um paraíso perdido, as bebedeiras e as cirroses o afogamento conhecido desse “pássaro azul, que quer sair.” No interlúdio mexicano da aldeia de Angel, na Quadrilha Selvagem, diz-se que “we all dream of being a child again. Even the worst of us... Perhaps the worst most of all.” Não se sabe que mais dizer, a não ser recomendar esta série fabulosa de David Samuel Peckinpah. É onde tudo começa…"
Texto do João Palhares.
Os episódios não têm legendas, e têm áudio em inglês.

Episódio Piloto
Episódio 1
Episódio 2
Episódio 3
Episódio 4
Episódio 5
Episódio 6
Episódio 7
Episódio 8
Episódio 9
Episódio 10 
Episódio 11
Episódio 12
Episódio 13
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domingo, 15 de setembro de 2019

Quem Programa Sou Eu: Os Cineastas e a Televisão, por João Palhares

O João Palhares é um velho amigo do M2TM. Blogger desde 2007, autor do Cine Resort, co-fundador do Cineclube de Braga, Lucky Star, em conjunto com o José Oliveira, podem ler a entrevista aqui, e também já colaborador dos Thousand Movies no passado. Lembro-me de uma participação num 5x5 e no ciclo de aniveersário, por exemplo. E foi assim, com todo o gosto, que lhe enderecei este convite, com o tema por si escolhido a ser "Os Cineastas e a Televisão".
Para começar, vamos passar a palavra ao João, que fez todos os textos dos filmes que poderão ver aqui nos próximos dias. Os filmes, e não só, a partir de amanhã:



"Custa ler meia volta que é neste momento que se vive a época de ouro da televisão, e que haja muita surpresa e elogio a “atitudes progressistas” sempre que um realizador de cinema trabalha num episódio duma série ou num especial Netflix, como nos últimos anos fizeram Quentin Tarantino, James Gray, Martin Scorsese, Christian Petzold, M. Night Shyamalan, David Lynch ou David Fincher, quando nos anos 40, 50 e 60, foi um laboratório privilegiado para actores, escritores e realizadores, onde podiam trabalhar regularmente e quase ensaiar, como faz um músico, antes de um novo filme; bem como trabalhar, simplesmente, quando Hollywood não tinha nada para eles, e fazer belíssimos trabalhos. Foi durante estes anos, afinal, que se fizeram séries como “Screen Directors Playhouse”, “The Twilight Zone”, “Playhouse 90”, “Wagon Train”, “Alfred Hitchcock Presents”, “The Rifleman”, “Alcoa Premiere” ou “The Westerner”, por exemplo. E para a televisão, trabalharam Anthony Mann, Budd Boetticher, Don Siegel, Blake Edwards, Robert Aldrich, Nicholas Ray, Otto Preminger, Orson Welles, Alfred Hitchcock, Leo McCarey, Frank Borzage, Jacques Tourneur, John Ford, Allan Dwan, Ida Lupino, Frank Capra, Robert Siodmak, Ingmar Bergman, Edward Ludwig, Vittorio Cottafavi, Otar Iosseliani, John Cassavetes, Roberto Rossellini, Joseph H. Lewis, Samuel Fuller, Jean Renoir, Nagisa Ôshima, Helmut Käutner, Alexandre Astruc, Manuel Mur Oti, Jerry Lewis, Éric Rohmer, Abel Gance, Hang-Jürgen Syberberg, Ermanno Olmi, Rainer Werner Fassbinder, Luigi Comencini, Vittorio De Seta, Sergio Sollima, Jean-Luc Godard, Paul Newman, Chris Marker, Pedro Costa, entre muitos outros realizadores que começaram no cinema, alguns durante a altura do mudo. 
Podia ser só isto e já estávamos muitíssimo bem servidos, com centenas de horas para nos pormos a par de filmografias com interlúdios televisivos ou continuadas exclusivamente (ou quase) no pequeno ecrã (pense-se no resgate das carreiras de Jacques Tourneur, John Brahm, Ida Lupino, Mitchell Leisen, Vittorio Cottafavi ou Sergio Sollima) mas também foi na televisão que tiveram os seus primeiros trabalhos Sidney Lumet, Arthur Penn, Robert Altman, John Frankenheimer, Sam Peckinpah, Richard C. Sarafian, Robert Mulligan, Daniel Petrie, William Friedkin, Bob Rafelson, Larry Cohen, John Boorman, Stuart Rosenberg, Sydney Pollack, entre muitos outros, antes de tomarem o cinema de assalto nos anos 60 e 70. Nos primeiros anos de existência, como era terreno virgem e explorado por produtores independentes que ainda não controlavam as operações com punhos de ferro nem exigiam grandes formatações ou limites aos programas além dos da duração, podia-se experimentar quase de tudo em televisão. Nestas condições – a que se pode ainda acrescentar o facto de se ter podido fazer fosse o que fosse, durante uns tempos, sem pensar em horários para crianças e para adultos (não havia ainda controlo de idades) – não era de admirar que se reunisse um grupo muitíssimo variado de talentos, do teatro ao cinema, que ia aprendendo a conjugar-se e a completar-se para criar algo diferente. 
"Havia aquele sentido de energia, ali”, disse Robert Mulligan em entrevista ao Film Journal International, “acho que todos os tipos da televisão o tinham. A frase de Paul Newman sobre Sidney (Lumet) – de que realiza como se estivesse estacionado em segunda fila – acho que nos descreve a todos. Eu gosto de trabalhar rápido. Gosto de ensaios, montes deles. Quanto mais ensaios um actor tem, mais seguro se torna. Não acredito em actores que se poupam para a luz vermelha. Quero experimentar a interpretação para que se saiba se a cena funciona. Se um actor é como um mergulhador a saltar de uma prancha de mergulho, não quero que ele me diga que consegue fazer o salto mas não o vamos ensaiar. Eu digo que se consegue mergulhar melhor quando se sabe para onde se vai. O argumento com que confronto esse tipo de actores é: E as surpresas que podem acontecer quando se sabe para onde se vai? O que é que pode acontecer numa cena além do que é bem comum e óbvio? Eu acho que todos os realizadores de que estivemos a falar tiveram o mesmo sentido de preparação, a capacidade para se sentarem com um actor e o ouvirem a falar sobre o que quer fazer. Mas não falemos demais. Vamo-nos levantar e fazê-lo." 
Também Clint Eastwood, que começou a realizar no início dos anos 70 (o seu primeiro trabalho é uma curta documental chamada The Beguiled: The Storyteller, debruçada sobre o processo criativo de Don Siegel, o seu grande mentor e colaborador destes anos (1968-79), durante a rodagem de The Beguiled), passou pela televisão como actor, apesar de ter começado a carreira de cinema nos estúdios da Universal, quando era conhecida por Universal-International e lá trabalhavam realizadores como Raoul Walsh, Douglas Sirk, Budd Boetticher, Jack Arnold, George Sherman ou o próprio Siegel. Em “Rawhide”, série em que interpretava Rowdy, o segundo capataz de um grupo de vaqueiros, trabalhou com Jack Arnold (com quem já tinha trabalhado em Revenge of the Creature e Tarantula), e com Stuart Heisler, Robert D. Webb ou Gerd Oswald, realizadores de cinema já veteranos e experientes que se refugiavam na televisão ora por não arranjarem trabalho nos grandes ou pequenos estúdios ora simplesmente para manterem um certo ritmo de trabalho - para ensaiar o ofício. Lembrando palavras de Eastwood à Rolling Stone, “é como aquela história do grande trompetista clássico que, um dia, encontraram a tocar numa orquestra de basebol, em Wrigley Field. Alguém o reconheceu e perguntou, ‘Meu Deus, maestro, o que é que o maior trompetista clássico do mundo está a fazer numa banda de basebol?’. Ele respondeu, ‘Tem de se tocar todos os dias’. Em “Rawhide”, pude tocar todos os dias. Ensinou-me a reagir e acompanhar, a inventar e a levar as coisas para a frente.” 
O interesse dos grandes cineastas pelo meio novo da televisão foi muito bem resumido por Jean Renoir, em conversa com André Bazin e Roberto Rossellini no final dos anos 50. “Todas as artes”, diz ele, “as artes industriais (e, afinal de contas, o cinema é uma arte industrial) foram grandes no começo e depois degradaram-se com a perfeição. Há pouco falei dos tapetes de Arrás, mas é evidente que o mesmo vale para a cerâmica. Há uns anos também eu trabalhei com a cerâmica, tentei reencontrar a antiga simplicidade técnica, e reencontrei-a, mas artificialmente; e foi essa a razão pela qual me dediquei a uma profissão que era verdadeiramente primitiva: o cinema, no seu início. O meu primitivismo na cerâmica era um primitivismo artificial, porque eu recusava-me a utilizar os aperfeiçoamentos da técnica da cerâmica e limitava-me, voluntariamente, a fórmulas mais simples. E isto não era autêntico, era uma construção intelectual. O que acabo de dizer faz muito sentido no ramo da cerâmica. O meu pai, que trabalhou com cerâmica, explicou-me que se chegou a pintar um vaso com todas as cores inimagináveis, tal como se pinta sobre tela ou papel. Já não há cerâmicas, acabou-se tudo. A cerâmica existia quando tinha à disposição cinco, seis cores, quando possuía uma paleta limitada e técnicas complicadas. 
“O mesmo se aplica ao cinema; as pessoas que realizaram os primeiros filmes americanos ou suecos ou alemães – essas primeiras obras tão boas – não eram, com certeza, todos grandes artistas, aliás muitos deles eram artistas medíocres. E mesmo assim os filmes deles eram bons. Porquê? Porque a técnica era difícil: aqui está. Em França, depois do período majestoso, depois de Méliès, Max Linder, temos filmes que não valem o que quer que seja. Porquê? Porque éramos intelectuais, porque queríamos fazer filmes de arte, queríamos realizar obras de arte. Na verdade, a partir do momento em que nos sentimos intelectuais, deixando de ser artistas manuais, corremos um grande perigo. Se hoje, eu e o Roberto, nos dedicamos à televisão, é porque a televisão está num estádio técnico primitivo que talvez possa dar aos autores o espírito do cinema primordial, quando todas as realizações eram boas.” 
Outra das coisas que aguçou a curiosidade de realizadores consagrados ou encenadores jovens em relação à televisão, nos anos 50, foi a transmissão em directo, que implicava um jogo de cintura enorme se se quisesse fazer algo minimamente apresentável. Mas durante os directos, se se visse algo que valesse a pena, “um pedaço de emoção que não estava lá” (nas palavras de Arthur Penn), podiam-se mandar às urtigas todas as marcações e planeamentos de guiões de rodagem e arriscar manter um grande plano ou o exorcismo de um actor talentoso, em busca de revelações inéditas e impossíveis com regras e planeamentos. No início, a televisão pôde ser a ponte de acesso do grande público ao Teatro, através das encenações de Penn, Lumet, Cottafavi ou Bergman, além de ser também uma forma de literatura que o cinema não podia nem pode ser, emulando a leitura em capítulos ou tópicos, das enciclopédias aos grandes romances, dos livros técnicos aos livros de contos, das biografias aos livros de história, através de séries ou mini-séries de televisão como “Berlin Alexanderplatz” de Fassbinder, “Histoire(s) du cinéma” de Godard, “Cuore” de Comencini, “La lotta dell'uomo per la sua sopravvivenza” de Rossellini, “L'héritage de la chouette” de Marker, “Cristóbal Colón” de Cottafavi, ou a já citada“Alfred Hitchcock Presents”. Trabalhos feitos com a especificidade do meio em vista, com muito engenho e grande inteligência. 
Agradecendo ao grande Francisco Rocha o convite, a oportunidade e o desafio, termino dizendo que há várias televisões: a que documenta o mundo e tem toda uma herança por si só a que prestar contas, das grandes reportagens aos debates políticos mais icónicos, do homem à Lua e da poesia dos grandes desportistas; a televisão de todos os dias, que nos pode preencher alguns espaços de tempo sem termos de pensar se se compara a um plano do Mizoguchi, e que vai de João Baião a Jerry Seinfeld; a ficção formatada que idealmente podia fazer o mesmo que o cinema, mas se apressa demais e se perde nas malhas da estupidez e da banalidade; e a que não merece menção e hoje parece ocupar quase todas as grelhas e horários; por fim, nas margens ou no fundo de tudo isto, há também a que merece ser considerada como parte da história do cinema, a que ajudou a financiar certas empreitadas impensáveis, a que permitiu a grandes cineastas fazer experiências e ensaiar antes dos concertos em salas de espectáculos, a que fez, cimentou ou resgatou carreiras, a que vai sintetizada neste pequeno ciclo dos “Cineastas e a Televisão”."

Roberto Rossellini na rodagem de “L'età di Cosimo de Medici” (1973)

sábado, 14 de setembro de 2019

Alley Cat (Dora-heita) 2000

Samurai Koheita Mochizuki, que tem o apelido de Dora-Heita, que significa "alley cat", ou "playboy", é um novo magistrado numa pequena cidade, que finge ser alcoólico, mas na verdade foi enviado para limpar esta cidade corrupta e sem lei. A sua tarefa é complicada pela chegada inesperada de uma mulher...
Com a indústria cinematográfica japonesa à beira de um colapso entre 1969/70, quatro dos seus realizadores mais importantes, Akira Kurosawa, Masaki Kobayashi, Keisuke Kinoshita, e Kon Ichikawa, formaram uma produtora a que chamaram de "Club of the Four Knights" (Yonki no kai). Esperavam que esta produtora amplamente financiada ajudasse a revitalizar o cinema do seu país, mas o seu primeiro filme, Dodes'ka-den (1970), de Akira Kurosawa foi um fracasso financeiro, e a produtora entrou em colapso, com cada um deles a seguir depois por caminhos diferentes.
Um dos projectos desta equipa que nunca passou do papel, seria este "Dora-Heita", dirigido por Kon Ichikawa muitos anos depois, numa altura em que os outros realizadores já tinham falecido. Ichikawa tinha então 84 anos, e o argumento do filme seria creditado a si, e aos outros três realizadores, porque supostamente eles iriam realizar o filme em conjunto, embora seja difícil de imaginar o que poderia sair dali.
Com um herói guerreiro moralmente ambíguo, o argumento aproxima-se mais a "Yojimbo" e "Sanjuro" de Kurosawa, e tal como estes também foi baseado num livro de Shugoro Yamamoto, embora cinematograficamente o filme não tivesse nada a ver com os filmes de Kurosawa, A desconstrução geral do mito samurai e todos os aspectos cerimoniais e hierárquicos são extremamente bem sucedidos, e o elenco de apoio é brilhante, com actores associados a um ou mais dos argumentistas. Este é o último filme deste ciclo. 
Legendas em inglês.

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quinta-feira, 12 de setembro de 2019

47 Ronin (Shijûshichinin no Shikaku) 1994

No Japão de 1701, Asano,  o daimyo de Ako, agrediu Kira (Rie Miyazawa) um oficial do Shogunate, no castelo de Edo, crime pelo qual foi condenado a cometer suicídio. No ano seguinte, um dos antigos guardiões de Asano, Kuranosuke Oishi (Ken Takakura), reúne um grupo de outros seguidores do seu senhor e com eles conspira para se vingar de Kira, a quem ele considera responsável pela morte de Asano. 
Desde o início até ao fim, dificilmente há um momento do filme que não seja cativante. Organizando cuidadosamente os seus cenários e as suas personagens, coreografando perfeitamente os movimentos destes últimos, e filmando cada imagem encantadora com tremenda habilidade, Ichikawa criou uma bela visão para a historia do cinema. Praticamente todos os instantes de cada cena apresentam ao espectador um quadro impressionante, quer ele enquadre um bando de samurais que conspiram à noite com silhuetas de árvores, ou mostre o líder desses homens diante da entrada de uma casa sob um galho de uma árvores carregado com flores de cerejeira. ou simplesmente apresente dois personagens sentados em silêncio numa sala austera, tudo é pura poesia cinematográfica.
Realizado em 1994, é uma das muitas versões desta famosa história, e é basicamente uma reformulação do cinema de samurais de final dos anos sessenta, período no qual Ichikawa foi muito activo. O protagonista é Ken Takakura, que tinha protagonizado cinco anos antes um filme de Ridley Scott, "Black Rain".

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terça-feira, 10 de setembro de 2019

Princess from the Moon (Taketori Monogatari) 1987

Quando uma misteriosa luz aparece no céu, um casal pobre investiga e encontra uma pequena cápsula perto do túmulo da sua filha. A cápsula abre-se para revelar um bébé que se parece muito com a filha. Decidem adoptá-la e ela cresce tornando-se uma jovem de excepcional beleza, incapaz de decidir qual dos seus muitos pretendentes realmente a ama. Quando ela toma uma decisão final descobre onde estão as suas origens, e não é na Terra... 
Toshirô Mifune e Ayako Wakao, dois já veteranos do cinema japonês são o casal central deste filme de fantasia, baseado numa história tradicional japonesa que não é muito familiar para o público ocidental. A mesma história deu origem a um outro filme produzido pelos estúdios Ghibli intitulado "The Tale of the Princess Kaguya", lançado em 2013, mas a esta primeira versão, produzida pelos estúdios Toho, foi dada à história uma reviravolta ficcional mais cientifica.  
Foi estreado com o 55º aniversário do Estúdio Toho. Ichikawa observou que queria fazer esse filme há muitos anos, e a sua intenção era fazer um filme de pura diversão. Foi selecionado como filme de abertura para o Festival de Cinema de Tóquio, onde não foi bem recebido pelos críticos. Os estúdios promoveram o filme fortemente, e tiveram o segundo maior retorno nesse ano. 
Legendas em inglês.

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