"Sam Peckinpah pode ser conhecido principalmente pelo seu temperamento dito impossível, pelo seu alcoolismo selvagem e pelos seus filmes violentos e desintegrados. Mas como é que os filmes podiam ser apenas o resultado da sua impetuosidade e do seu mau feitio, regados ou não a álcool? Há mil estórias de desentendimentos com produtores, de estadias muito demoradas no México, entre o paraíso e o inferno, pequenos-almoços a consistir de whisky e sardinhas, as três da tarde como hora da transição entre a sobriedade (ou a bebedeira funcional) e a desarticulação absoluta, os soros etílicos e as aventuras funestas com drogas mais pesadas no final da vida. Portanto talvez seja inimaginável para alguns que fosse um leitor ávido de Shakespeare, Dickens, Thoreau, Eurípedes, Aristóteles, ou os mais variados livros de história, da China ao Insurgent Mexico de John Reed (que formou as bases de Major Dundee, Quadrilha Selvagem e Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia), e que tivesse começado no teatro, com Tennesse Williams como influência suprema, encenando também peças de Luigi Pirandello ou William Saroyan.
“Não sou um anti-intelectual,” disse Peckinpah à Playboy, “mas sou contra os pseudo-intelectuais que escorregam na diarreia verbal deles como cães e lhe chamam propósito e identidade. Um intelectual que incorpore o seu intelecto em acção é um ser humano completo.” Podem ser outras palavras para trabalho, que nem no caso de Peckinpah nem no caso de quem quer que seja sai despejado em três tempos e sem algum método e muita disciplina. No caso do americano, a descoberta desse método deu-se com a adaptação escrita que teve de fazer para a encenação de The Glass Menagerie, de Williams, sacrilégio necessário e revelador que o fez perceber que se saía melhor a re-trabalhar as obras dos outros do que a escrever textos originais por si próprio. O método alargava-se ao que fazia com os cenários que mandava encher de adereços e depois retalhava sem misericórdia e com a quantidade de cobertura que fazia chegar à sala de montagem para cortar mais tarde em sequências fabulosas: o massacre da Quadrilha Selvagem, o genérico de Pat Garrett & Billy the Kid, as batalhas sonhadas de Cross of Iron, etc, etc.
O que as carreiras de cineastas como Sam Peckinpah sempre revelaram foi uma falha crassa no sistema americano de fazer filmes, essa ideia abstracta (que provoca sempre problemas tão concretos) do que é um filme bem sucedido. O dinheiro, para não estar com grandes rodeios. Não se sabe se foi a brincar ou a falar a sério, mas pode-se adivinhar, que Peckinpah disse que aquilo por que passou para fazer filmes com orçamentos de milhões de dólares foi pior que a experiência na Segunda Guerra Mundial. Fora os feitios, fora as ameaças e fora o álcool, fora as condições não medicadas e a solidão a que se submetia voluntariamente (a parte auto-destrutiva do processo, e que pode abarcar as alturas de “eu vou ser o maior filho-da-puta” e os abatimentos de “eu sou o filho-da-puta número um”) era porque se importava. Foi por isso que assaltou o arquivo da Metro-Goldwyn-Mayer e pegou nos negativos de Pat Garrett & Billy the Kid, a única razão por que hoje o podemos ver em mais do que uma versão. Fê-lo porque sabia o que era a gratificação de um trabalho bem feito, quais as escolhas certas entre centenas de horas de material filmado, a serenidade de uma rodagem em que o dinheiro, os egos e o tempo não fossem uma questão, a recordação dos gabinetes e dos estúdios que o actor e produtor Dick Powell lhe cedeu para dar largas ao seu talento no final dos anos 50.
A produção de “The Westerner”, série de treze episódios emitida pela NBC no final do ano de 1960, foi um deleite absoluto e quase inédito para Peckinpah. Foi aí que conheceu Lucien Ballard, Julio Corona, Chris Carter, Victor Izay, Michael Mikler, Dub Taylor, Warren Oates (já tinha conhecido Slim Pickens, R.G. Armstrong e Katy Jurado, que também aparecem nesta série nos seus respectivos episódios, Line Camp, School Days e Ghost of a Chance) e sobretudo Brian Keith, com quem assentou desde o início tentar homenagear os cowboys perdidos mas cheios de sonhos e esperanças para as suas vidas – sempre com a ideia da família e de uma casa, todas as noites nos copos e em bordéis, gastando salários de um mês de trabalho no duro numa noite de prazeres fugazes – que ambos conheciam desde muito jovens na personagem de Dave Blassingame. “Blassingame” era o nome de um desses homens que Keith conheceu, “David” era o nome do pai de Peckinpah, como do próprio Peckinpah e de um seu sobrinho.
A primeira coisa a saltar bem à vista em “The Westerner” é a liberdade de desobediência a um formato que seja, quase sem personagens secundárias recorrentes e sem espaços reconhecíveis de episódio para episódio. Dave Blassingame e o seu cão, Brown, animal pouco prestável mas que funciona quase como a consciência de Dave (como no episódio passado quase inteiramente no deserto, Treasure, em que os recuos de Brown face ao calor entre a fronteira dos Estados Unidos e do México emocionam a personagem de Keith e o acabam por convencer a voltar para trás, impedindo-o de cometer um erro irreversível), percorrem o Oeste em busca de trabalho, dinheiro, pão, amor, educação, aventuras, uma bebida, uma noite de diversão, justiça, um tecto, um abrigo da tempestade, e saem quase sempre de mãos a abanar. Porque pelo caminho encontram homens e mulheres que querem o mesmo, estejam presos a uma relação de dependência coagida (Jeff), queiram companhia e não saibam como o fazer (School Days), cobicem um cão que já tem dono (Brown), sintam-se afastados do mundo, presos a um casamento sem as comodidades da alta sociedade, e façam de tudo para escapar (Mrs. Kennedy), estejam fartos da violência de todos os dias (Dos Pinos), cobicem a mesma mulher que o amigo (The Courting of Libby), queiram ouro abandonado e sem dono (Treasure) ou a herança de um familiar distante que está às portas da morte (The Old Man), tenham saudades dos pais, dos filhos e dos maridos (Ghost of a Chance), tentem provar que são homens (Line Camp, Hand on the Gun), enterrar quem amam (Going Home) ou vender um quadro comprometedor (The Painting).
Sabe-se que o filme preferido de Sam Peckinpah entre os catorze que realizou é The Ballad of Cable Hogue, elogio em tom maior aos últimos desbravadores de fronteiras, o que volta a baralhar as contas quando se tenta entender o homem a quem puseram o nome de “Bloody Sam”. Podem-se lembrar os sorrisos envergonhados de Dave Blassingame quando conhece as mulheres por quem se apaixona à primeira vista, arranjando-se e perfumando-se para as escoltar rua acima ou rua abaixo sem pedir algo em troca. Os ataques de violência que atravessam a obra de Peckinpah talvez sejam todos uma tentativa desesperada em encontrar um paraíso perdido, as bebedeiras e as cirroses o afogamento conhecido desse “pássaro azul, que quer sair.” No interlúdio mexicano da aldeia de Angel, na Quadrilha Selvagem, diz-se que “we all dream of being a child again. Even the worst of us... Perhaps the worst most of all.” Não se sabe que mais dizer, a não ser recomendar esta série fabulosa de David Samuel Peckinpah. É onde tudo começa…"
Texto do João Palhares.
Os episódios não têm legendas, e têm áudio em inglês.
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Episódio 7
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Episódio 11
Episódio 12
Episódio 13
Imdb
Boa tarde,
ResponderEliminarO link do episódio 7 está repetindo o 6.
Favor verificar.
Obrigado.
Obrigado, já está mudado.
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