domingo, 29 de setembro de 2019

I Ragazzi di Celluloide (I Ragazzi di Celluloide) 1981-84

“I ragazzi di celluloide” foi feito para a R.A.I. em episódios e é uma das obras preferidas de Sollima, retratando os seus dias no Centro sperimentale di cinematografia[1] na personagem de Nicola, interpretada por Massimo Ranieri, alter ego do realizador. A Fabio Zanello, em 2004[2] e sobre “I ragazzi”, Sollima disse, “Tem de ver! Porque é uma história vagamente autobiográfica, ligada à minha geração. Um pedaço da história da Itália! As séries deviam ter sido três: da Segunda Guerra Mundial aos dias de hoje. Durante o fascismo os jovens apaixonavam-se pelo cinema para escapar àquele manto asfixiante de imbecilidade. Os acontecimentos remontam a 1941. O cinema era um sonho para nós. No elenco estavam Massimo Ranieri que se junta à Resistência e se apaixona pela Roberta Paladini, Alfredo Pea, que na ficção gosta de homens e não de mulheres, Massimo De Rossi no papel de um aluno muito talentoso, e o meu adorado William Berger já usado em Cara a Cara (1967) na pele de um professor comunista. Depois havia Leo Gullotta que faz de judeu e é óptimo como sempre. A primeira série agradou muito, foi à Mostra de Veneza e depois a Nice. Passou um ano e exibiram a segunda série em Ferragosto. Foi Kezich quem me fez o melhor elogio ao trabalho: ‘De agora em diante já não vais ser conhecido como o homem que fez “Sandokan”, mas sim como o homem que fez “I ragazzi di celluloide”’.”
“Ragazzi” começa muito apropriadamente com uma sequência de planos dos filmes com que Nicola sonha, depois dos créditos em fundo azul com o belíssimo tema principal composto por Giorgio Gaslini e que nos reenvia imediatamente para essa saudosa idade por que todos passamos e em que achávamos ser tudo possível. “The age of miracles”, como lhe chama Barbara Stanwyck quando ouve Marilyn Monroe dizer-lhe que tem 20 anos em Clash by Night (1952) de Fritz Lang. Nicola sonha com King Kong (1933) de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, Uma Noite Aconteceu (1934) e Não o Levarás Contigo (1938) de Frank Capra, The Plainsman (1936) de Cecil B. DeMille, A Carga da Brigada Ligeira (1936) de Michael Curtiz, Tarzan o Homem Macaco (1932) de W. S. Van Dyke e Chapéu Alto (1935) de Mark Sandrich, aparecendo com Gary Cooper, Claudette Colbert, James Stewart, Jean Arthur, Errol Flynn, Fred Astaire e Ginger Rogers entre tiroteios e danças, por entre fumos de pólvora e das máquinas dos estúdios e pelos cenários dos musicais de Hollywood. Sonha também em entrar no Centro sperimentale, junto com o amigo Piero (interpretado por Alfredo Pea), comparsa das centenas e centenas de sessões de filmes americanos e aspirante a figurinista, com quem fala “della Garbo” e “della Davis” e com quem vê Stagecoach (1939) três vezes nesses cinemas de bairro, “numa sala plena de vida, de homens transpirados que mandavam bocas para os heróis do filme (‘olha o gajo!’, ‘prega-lhe mas é um beijo!’), numa cópia riscada, que a meio se calhar se partiu, e numa projeção pela certa desfocada”, como escreveu Jorge Silva Melo a propósito de The River's Edge de Dwan[3]. Havia de gostar muito de “Ragazzi di celluloide”, Jorge Silva Melo. Com a ajuda de Luca (Massimo De Rossi), Nicola e Piero entram no Centro, onde conhecem Teresa (Roberta Paladini), Leopoldo (Leo Gullotta) e o professor Nicodi (William Berger) e formam o núcleo de personagens que vão viver o cinema, mas também os terríveis dias do fascismo e da guerra, testar lealdades, prioridades e fibras humanas todos os dias. Como logo nas primeiras e muito conhecidas palavras de A Tale of Two Cities de Dickens, “It was the best of times, it was the worst of times.” Mas se o cinema serviu, nas palavras de Sollima, “para escapar àquele manto de imbecilidade”, serviu também para o pôr em perspectiva. Como quando Nicola, logo após saber que a amada Teresa foi apanhada pela polícia, encontra Nicodi e juntos veem A Grande Ilusão (1937) de Jean Renoir, no momento em que os prisioneiros de guerra do filme começam a cantar La Marseillaise, olha para o professor e espera que este olhe de volta para lhe dizer o “Bisogno fare qualcosa” que encerra a primeira série de “Ragazzi” e do qual é impossível duvidar; nunca quando o único som é o do hino francês a ecoar pelas paredes dessa sala da Cineteca (o “piccolo regno, ma così grande” de Nicodi, como diz Nicola no final da segunda série) e sentimos que para aqueles rapazes que olharam a guerra nos olhos e sentiram na pele as abalroadas do regime, acabou a idade da inocência.
Na série, Sollima fala disto tudo enquadrando-o no seu contexto histórico, usando imagens de época para construir grandes sequências didáticas, como faz também no seu livro Il cinema in U.S.A. de 1947, em que antes dos capítulos da primeira parte descreve minuciosamente os mecanismos políticos, sociais, económicos e culturais que tudo e todos condicionam, como as guerras de patentes na virada do século, a ressaca da guerra civil ou o início da grande depressão nos anos 1930. Em “Ragazzi”, veem-se fotografias da guerra, de grandes marchas fascistas, do “Duce” em campanha, das revistas do Centro sperimentale, a Bianco e Nero e a Cinema, de Alida Valli a cantar Ma l’amore no – canção famosíssima e importantíssima na Itália dos anos 1940 –, do final da guerra, do início da mobilização comunista e da chegada das forças aliadas a Roma. É neste espírito de mudança e de restabelecimento da ordem que Piero diz a Nicola, “Nicolino, quanto può essere bella la vita quando è futile”, quando veem ambos Sun Valley Serenade (1941) e toca Glenn Miller[4] (com John Payne e a banda de Miller) – norte-americano importantíssimo para esta geração que viveu a guerra e o pós-guerra. É ainda neste espírito que Sollima constrói uma bela sequência, no segundo episódio da segunda série de “Ragazzi”, em que aumenta e aumenta a euforia da liberdade, nos rodopios à volta da mesa e em que escorrega champanhe da garrafa e os seios de Lea (Michela Miti) espreitam pela camisa, fazendo dobrar e redobrar a velocidade dos rodopios e da euforia até cortar subitamente para a festa na casa de campo de Nicodi, em que se dança ao som de Miller e a energia contagiante de In the Mood ganha par na energia que Sollima imprime à montagem e permite também aos seus atores. E os atores em “Ragazzi” são tão capazes da maior contenção como da maior emoção, sendo bom exemplo disso, mas também da consciência de Sollima em relação a isso, uma cena logo no primeiro episódio da primeira série, em que Teresa faz uma prova de interpretação para entrar no Centro e Sollima nos faz perceber (ainda que seja com um simples jogo de escalas de planos) o seu talento e como é superior aos colegas que a antecederam. Não muito diferente do que faz, por exemplo, mas por outros meios, Clint Eastwood em Jersey Boys, quando Bob Gaudio ouve a voz de Frankie Valli pela primeira vez e se percebe a real medida do talento do vocalista dos The Four Seasons. Impressiona, também, a explosão de Nicola na casa dos pais, quando lhes diz que vai viver com Teresa e deixa sair o que sente em relação à sua vida e às suas aspirações e remata dizendo que não as pode conter mais quando os pais se fecham na sala e não lhe respondem a absolutamente nada, transparecendo tanto a raiva como o amor que Nicola sente pelos seus pais na interpretação de Massimo Ranieri, enquadrado com a porta fechada. Amor porque são os pais dele e raiva porque defendem e respeitam um regime político que o põe completamente doente e que só consegue esquecer indo regularmente ao cinema. Sentimento próximo do que o aproxima e repele de Luca, técnico exímio mas que assente com a mediocridade e a deixa encher cada plano que filma, achando que a tem controlada e pensando em tudo como um desafio formal que o permite falar “sotterraneamente”, julga ele, mas acabando seduzido pelos doces perfumes da banalidade. Interessa muito a Sollima saber exatamente como se maquinam estes assentimentos e estas seduções e portanto as cenas de filmagens, de rushes ou de mera discussão de ideias são sempre muitíssimo reveladoras. 
A segunda série de “Ragazzi” começa no preciso momento em que Nicola e Piero voltam da frente de batalha e querem dar os primeiros passos na traiçoeira indústria do cinema. Teresa é libertada pouco antes de acabar a guerra, reencontrando Nicola numa bela sequência de campos e contracampos e que vão pontuar todos os seus encontros e todas as suas despedidas, com a música de Gaslini que acompanhava os créditos dos três episódios da primeira série a servir sempre de banda sonora. A relação deles muda com o fim da guerra, mas já quando ela pairava por Roma e pelo mundo as prioridades dos dois pareciam afastá-los um do outro: Nicola na direção do cinema, Teresa na da luta política e armada contra o regime de Benito Mussolini. Muitas vezes ela o tinha repreendido por se desligar do mundo e do que se passava nele, usando o cinema como refúgio, e muitas vezes ele dizia a ela que não lhe via sentimentos mas uma ideologia fria e calculista. Separam-se por causa do cinema, que Nicola não quer deixar, e voltam-se a encontrar também por causa dele, quando Teresa vira heroína da Resistência no Norte da Itália e querem fazer um filme sobre as suas façanhas, com “Laura” (nome de batalha de Teresa) interpretando a si mesma. É o grupo habitual que fica responsável por realizá-lo: Nicola é o argumentista, Piero é cenógrafo, Luca o realizador e Leopoldo um dos atores, acabando o papel de “Laura” nas mãos de Lea, rapariga ambiciosa e com vontade incontrolável de ser estrela, quando Teresa recusa interpretar-se a si própria mas diz poder continuar a servir como conselheira técnica. O resultado é frustrante, porque tal como no projeto anterior de Luca, foi-se cortando ali e aparando aqui com justificações estéticas, mas o âmago e o móbil do projeto perderam-se pelo caminho. Perdeu-se também o grito de revolta de Nicola e o que este sentiu, por exemplo, a ver Obsessão (1943) de Luchino Visconti ou o Roma, Cidade Aberta (1945) de Roberto Rossellini, que é também personagem na série (tal como Federico Fellini), e que o outro filme que escreveu também podia ter: frescura, vigor, força. Compraram-lhe o roteiro e ensinaram-lhe que quem compra os direitos normalmente quer ficar sem os deveres, e finalmente que é preciso recusar fazer certas coisas e ir beber uns copos com os amigos para falar de cinema e rir na frente do falhanço e da tristeza, imaginar que motivos, razões, que histórias e mistérios escondem os passos anônimos e apressados que ecoam na calçada e nas paredes das ruas de Roma. E, quando se achava impossível estar a vida à altura das grandes cenas romanceadas do cinema, os passos transformam-se primeiro em sombras e depois na Teresa de tantas despedidas, sem palavras, reunida ao antigo grupo que sempre sonhou estar ao lado das grandes estrelas de Hollywood, e agora pode dizer que viveu e sofreu o suficiente para merecer uma cena saída de um grande filme, enquanto a cara de Teresa enche o ecrã com um sorriso que faz antever um grande recomeço para ela e para Nicola, num freeze frame enternecedor ao som da música nostálgica desta nostálgica série. Nicola sempre se queixou que a vida não fazia jus aos grandes filmes (ou pelo menos aos “nossos” filmes), mas aprendeu que não há filme algum que supere esses pequenos momentos urdidos pelo destino e que nos chegam para uma vida inteira, recordados entre lágrimas e sorrisos. 

[1] O Centro sperimentale di cinematografia foi fundado oficialmente em 13 de abril de 1935, após Alessandro Blasetti ter estabelecido as bases de uma escola que formasse profissionais de cinema, no início dos anos 1930, e de ter dirigido um curso de interpretação em que os alunos visitavam hospitais e asilos de loucos e viam pessoas em situações extremas de forma a praticarem um estilo de interpretação estritamente realista. Achando isso insuficiente, a recém-formada Direzione generale per la cinematografia funda então o Centro sperimentale, deixando-o nas mãos de Luigi Chiarini (o modelo para a personagem interpretada por Pietro Biondi em Ragazzi), que manda construir um novo edifício e que junto a Umberto Barbaro (a base para a personagem interpretada por William Berger) forma vários cineastas e atores italianos, como Michelangelo Antonioni ou Alida Valli, além do próprio Sollima. É este o período retratado nas duas séries de “I ragazzi di celluloide”. Entre 1968 e 1974, é Roberto Rossellini quem dirige o Centro. 
[2] La regia come match di boxe – Intervista a Sergio Sollima, 4 de agosto de 2004. 
[3] “Allan Dwan: Matar para Viver. Culturalmente incorrecto”, Público, 15 de março de 1995. Republicado em Século Passado (Cotovia, 2007). 
[4] Alton Glenn Miller nasceu em 1 de março de 1904 no Iowa e foi um dos símbolos maiores da era das big bands, gravando e compondo grandes sucessos como In the Mood, Moonlight Serenade e Moonlight Cocktail (que aparecem todos em “Ragazzi”). Em 1942, Miller quis se juntar ao exército e voluntariou-se também para entrar na marinha, mas recusaram-no por ter 38 anos e não precisarem dos seus serviços, acabando por conseguir, no entanto, que o exército o aceitasse como líder de uma banda militar (a Army Air Force Band) que animaria as tropas e o povo americano nos anos seguintes. Pela música e pela morte prematura, sem ter ainda acabado a Segunda Guerra Mundial, fica sempre associado ao war effort e aos valores e à força que tentava dar ao povo americano e às forças aliadas, cruzando mesmo as fronteiras europeias. “America means freedom and there’s no expression of freedom quite so sincere as music”, disse ele uma vez. Em 1954, Anthony Mann fez The Glenn Miller Story, um belo filme com James Stewart no papel de Miller. 

* excerto de «Sergio Sollima depois de Revolver», escrito para a Foco – Revista de Cinema.
* Texto de João Palhares
Nota: os filmes não têm legendas

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