terça-feira, 29 de maio de 2018

...Quando Troveja (...Quanto Troveja) 1999


A relação de António e Ruth termina inesperadamente. Ruth vai viver com Pedro, o melhor amigo de António. António, desesperado, deixa-se esmagar pelas suas próprias fraquezas. Mas, do bosque, surgem dois estranhos seres, Violeta e Gaspar, que vão interferir na vida de António… 
"O título de "... Quando Troveja" começa por reticências e começa bem. O título do primeiro filme de Manuel Mozos ("Um Passo, outro passo, e depois...", de 1990, feito para a RTP) tinha-as no fim, só que o "depois" foi a experiência traumática de Xavier (rodagem em 1991, falência da produtora, filme inconcluído todo este tempo - e o material, digo eu que já o vi, era excelente, o que agrava a frustração). Depois de um esperançoso alvor, um buraco negro de quase dez anos - e agora um retorno que que tem praticamente o sabor de um recomeço. Não admira que o filme seja um bocadinho negro - o que é que se esperava?
António, o protagonista, não é um sujeito muito interessante. A mulher de quem gostava trocou-o por outro e o rapaz desceu a rampa dos abismos: álcool, solidão partilhada com uma companheira de morada a quem a asma parece colocar às portas da morte, sobrevivência através de fracos recursos de pequeno-burguês intelectual (traduções e etc.), habitação em estado de pré-desmoronamento - há fendas, insectos, e os caroços das cerejas atiram-se em frente, para um chão que adivinhamos conter todos os restos provisórios de existências que estão numa encruzilhada que pode ser apenas a antecâmara do oblivio. Correm por ali fantasmas de suicídio - logo desde a sequência de abertura - nada vale a pena. 
Uma personagem assim não tem muito para nos ensinar. Nem para nos distrair. Mas consegue, por artes mágicas de um filme que as invoca muito concretamente, ter alma de herói, porque é mais difícil sobreviver à selva da infelicidade urbana, armadilhada pelos desencontros da vida, que é a selva do Vietname. Na realidade e no cinema. Na selva do Vietname há tiros e correrias, adrenalinas, combates de frente ou de través, acção. Na selva da infelicidade, os protagonistas estão tomados pela tragédia da apatia, pelo estado vegetativo de um dia que se segue a outro sem remissão, não fazem coisa alguma e não vêem como saír do buraco. Pior: as mais das vezes, as tentativas que encetam conduzem-nos em sentido contrário, não sem antes terem experimentado o agravo da humilhação que quase sempre vem no contrapeso de tais empresas. Só por milagre as coisas se podem voltar a pôr sobre carris. 
É aqui que Quando Troveja faz apelo a duas personagens rigorosamente únicas em toda a caminhada do cinema português. Dois adolescentes que de crianças muito infelizes se transformam numa espécie de duendes da floresta, duas criaturas que contêm em si toda a dor, inocência e esperança do mundo e que vão interferir nas outras vidas para consertar a insustentável desdita que nelas reina. Nada de extraordinário, porém. António regressa à superficie do poço para onde se deixara afundar, as cores da realidade perdem as tonalidades de negrume, chuva, noite e deliquescência, vão-se os azuis e os castanhos, ressurgem amarelos e claridade - e é como se uma pitonisa se intrometesse entre nós e o filme e nos começasse a sussurrar coisas bonitas ao ouvido. Os duendes dançam entre luzeiros e regozijo, o filme de Manuel Mozos pode fechar porque a tempestade - aquela tempestade, pelo menos - já passou. 
Como se vê, Quando Troveja não tem uma história de seres singulares. É gente como eu e vocês, em percurso muito comum, aí se fixando o seu primeiro trunfo: nada de reflexões vastas, nada de recolocar o destino do país, nada de Portugal, anos 90, mas uma coisa íntima, estreita, breve. Simples não se dirá, porque é de extrema dificuldade o terreno que pisa - para credibilizar os vários níveis de realidade em que decorre, para materializar as suas personagens (e Miguel Guilherme faz o pleno do desamparo sem miserabilismos, no desempenho do protagonista), para dar dramaticidade a um quotidiano sem elementos de excepcionalidade. Simples não, que a morfina da vida é bem complicada." 
* Texto in Expresso de 5-2-2000

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