segunda-feira, 28 de maio de 2018

Glória (Glória) 1999

Ivan vai viver com o pai, Vicente, chefe de estação dos caminhos de ferro de uma aldeia remota no interior de Portugal. As pessoas andam ocupadas com o seu trabalho, cada uma enredada na sua própria vida. Glória vive a sua carreira e parece afastar-se de tudo e de todos. O único lugar seguro do planeta é o refúgio de Ivan que fica feliz por poder partilhar o segredo com Glória. Um pequeno abrigo escondido no rio, debaixo da água que separa os mundos. Apetece ficar aqui...
"Manuela Viegas não pertence ao universo dos contadores de histórias. Talvez porque venha da montagem com incursões no ensino da Matemática e formação de economista, percebe-se que o seu terreno de eleição seja formal: modelos, linhas, circulações abstractas - nada de psicologia. Os materiais humanos estão antes de serem personagens (antes que um organizador de histórias as preencha de uma função, lhes afirme traços característicos ao serviço dessas histórias - processo corrente - ou então deles faça brotar um devir, uma acção encadeada, deles façam brotar histórias). Os humanos são pessoas - opacas - e o olhar da câmara não sabe, delas, mais nada do que aquilo que mostra. 
Há uma linhagem de "Glória". Começa, certamente, na fecundidade do universo de António Reis, passa pelo corte aberto por Pedro Costa, mas não tem a prodigalidade do primeiro (uma severidade impregnada de afectos), nem a aspereza do segundo. É, ao seu modo, um cinema mais moderno, pois não ilude a sapiência de uma estetização do sujo, do pobre, da barba de três dias que hoje circula como valor. E não só no cinema - veja-se a fiel coincidência do cartaz original do filme (com a assinatura de Julião Sarmento), infelizmente substituído, na campanha para o lançamento português, por um outro de muito menos adequadas notações visuais electrónicas. É uma estetização que parte de simulacros, que cultiva de maneira acentuada uma preocupação de perfeição, de um modo tão obsessivo que à proposta de deslumbramento a que não devemos furtar-nos, apetece contrapor a impetuosidade da unha que respasse a superfície da tela. - para ver se há algo por baixo, para ver se sangra. Não há maneira de o saber e não é licito apostar no escuro."
Texto in Expresso - 11-12-1999

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