sexta-feira, 13 de março de 2020

Europa 2005, 27 de Outubro (Europa 2005 - 27 Octobre) 2006

Em 27 de Outubro de 2005 num subúrbio pobre de Paris, Clichy-sous-Bois, Zyed Benna (17 anos) e Bouna Traoré (15 anos), morreram electrocutados quando fugiam à polícia que tinha efectuado uma rusga nesse local. Os jovens que tinham estado a jogar futebol com amigos, entraram em pânico e fugiram para o local errado, ou seja, a central eléctrica onde acabaram por ser vítimas do fatal acidente. Esta tragédia levantou uma enorme onda de indignação não só junto da comunidade muçulmana da localidade, mas também entre a população em geral, questionando-se fortemente a actuação das forças policiais na periferia das grandes cidades. Mais do que isso, a actuação da polícia, frequentemente acusada de brutalidade racista, apenas é a parte mais grotesca de uma situação mais profunda: a marginalização das comunidades imigrantes das grandes cidades, acantonadas em subúrbios, com péssimas condições de vida, frequentemente sem emprego, ou com empregos precários e mal pagos e sem quaisquer perspectivas de ver as suas situações poderem melhorar.
Europa 2005, 27 de Outubro é um pequeno filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet com cerca de dez minutos e meio de duração. O filme partiu de uma encomenda da RAI 3 por ocasião do centésimo aniversário do nascimento de Roberto Rossellini. Foi pedido a vários realizadores, entre os quais Manoel de Oliveira, David Lynch e Hou Hsiao-hsien) que realizassem curtas metragens inspiradas na personagem Irene, representada por Ingrid Bergman, do filme do mestre italiano Europa 51. O contributo de Straub e de Huillet excede um pouco os sete minutos solicitados e procura da forma original e radical que lhes é comum, transportar o cinema empenhado e militante de Rossellini para o início do século XXI. Por isso Europa 2005, 27 de Outubro, o dia em que os dois adolescentes morreram electrocutados, aborda esse acontecimento de uma forma simples, directa e crua, quase panfletária. O filme consiste em cinco reproduções com cerca de dois minutos cada, do local onde se situa a central eléctrica onde os dois jovens morreram. Uma rua anónima, com casas rodeando a referida central, iniciando-se com o aviso STOP NE RISQUE PAS TA VIE colocada junto às instalações e a câmara a filmá-la, assim como as imediações. Isto é todo o conteúdo do filme. No final em letras brancas surge a frase Chambre à gaz, Chaise electrique. Não há pessoas nem palavras, apenas ruídos naturais, entre os quais um cão que ladra. As quatro repetições têm apenas pequenas diferenças de enquadramento de imagens e de som. 
Três aspectos afiguram-se-me absolutamente centrais nesta curta metragem: o local, a repetição e a mensagem implícita. Sabe-se que Straub e Huillet sempre privilegiaram os locais onde filmavam fossem eles, na Sicília, em França ou no Egipto. Aquela rua feia junto à central eléctrica não tem qualquer tipo de atracção, mas foi lá que os jovens perderam a vida, logo deve ser lá que o filme deve ser feito. A repetição tem um efeito de consolidação da mensagem, como se a monstruosidade do que se passou nesse dia, deva ser recordada tantas vezes quantas as necessárias. Finalmente a mensagem implícita não precisa de proclamações. Bastam as imagens secas e aparentemente não emotivas do local onde tudo se passou e a frase final que associa as câmaras de gás à cadeira eléctrica. Associamos a câmara de gás e a cadeira eléctrica a duas formas de executar os condenados à morte. Mas também associamos a câmara de gás ao horror nazi como supremo acto de barbaridade racista. É o mesmo racismo, corporizado na polícia, que mata um jovem árabe e um jovem negro. Afinal, e essa é uma das ideias mais fortes de todo o seu cinema, a história vai-se repetindo não exactamente da mesma forma, mas mantendo as suas características essenciais. Trinta e três anos depois do seminal Lições de História, aqui está uma exemplar comprovação de uma desordem injusta que se perpetua no mundo. 
É o primeiro filme de Straub e Huillet filmado em tecnologia digital. Paradoxal e infelizmente, é também o último em que Huillet participa, antes do seu falecimento em 9 de Outubro de 2006. O que fica destes dez minutos e meios é um dos panfletos mais inteligentes e eficazes que alguma vez vi em cinema. Não são precisos grandes meios, nem grandes proclamações. Basta encontrar o sentido justo e a forma adequada para a seta encontrar o alvo.
Não precisa de legendas
* texto de Jorge Saraiva 

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