quinta-feira, 12 de março de 2020

Estes Encontros Com Eles (Quei Loro Incontri) 2006

«Numa carta, Pavese (1908-1950) escreveu: “Não sei se encontrarei o tesouro de Montezuma, mas sei que sobre o planalto de Tenochtitlan fazem-se sacrifícios humanos. Após muitos anos, não pensava mais nessas coisas, eu escrevia. Agora nem escrevo mais! Com a mesma obstinação, com a mesma vontade estoica de Langhe, farei minha viagem ao reino dos mortos. Se queres saber o que sou no presente, releia ‘a besta selvagem’ nos ‘Diálogos com Leucò’: como sempre, tudo previ há cinco anos. Quanto menos falares desta história com as ‘gentes’, mais te serei agradecido. Mas o poderei ainda?”.
Na mesa do quarto onde foi encontrado morto o autor que escreveu que “o estoicismo é o suicídio”, estavam caixas de soníferos e um exemplar do referido livro aberto na primeira página, com a frase visível: “Eu perdoo todo o mundo e peço perdão a todo o mundo. Está bem? Sem tagarelices demais por favor”. Pouco antes de morrer, anotou numa carta: “Ninguém lê os ‘Diálogos com Leucò’, embora seja meu único livro que vale alguma coisa”.» (blog Trópico)
Esses Encontros Com Eles marca o regresso de Straub e Huillet aos livros de Cesare Pavese que já tinham sido objecto da sua atenção em Das Nuvens à Resistência. Regresso a os Diálogos com Leucò, o livro favorito do escritor. Seria também a última longa metragem realizada por ambos, uma vez que Danièle Huillet morreria em 9 de outubro de 2006. Do ponto de vista formal representa o final de uma trilogia com dois filmes anteriores (Operários Camponeses e Humilhados/O Regresso do Filho Pródigo) já que os actores são os mesmos e foi rodado nos mesmos locais. O filme adapta os cinco últimos diálogos do total de vinte e sete da referida obra de Pavese. É provavelmente o mais filosófico filme dos realizadores. Os cinco diálogos apresentam-nos sempre duas personagens diferentes, ora humanos, ora divinos, representados por actores imóveis e captados em planos fixos de forma a dar primazia absoluta às palavras, evitando qualquer tipo de distração. Estes deuses mitológicos estão longe da tradição perfecionista das grandes religiões monoteístas, sobretudo da tradição judaico-cristã. A sua relação com os humanos não deve se vista na perspectiva de Kierkegaard de uma «relação sem relação» Se no filósofo dinamarquês a transcendência divina reduz o ser humano a uma inferioridade desesperada, nas mitologias clássicas, os deuses sem deixarem de o ser, surgem despidos dessa irredutível transcendência. São deuses quase humanos com as suas fraquezas e vacilações. Diria, citando de cor o filósofo alemão Ludwig Feuerbach, a expressão da criação humana à sua imagem e semelhança. E por isso, surgem naturalmente os diálogos possíveis, quase entre iguais, travados por seres humanos e deuses. É a morte, o amor, o significado da vida e a relação que se estabelece entre seres tão próximos, mas ontologicamente distintos. O sentido da procura da compreensão e dos projectos que os deuses têm para os seres humanos, sempre alvo de um misto de admiração e reserva, atravessam estruturalmente estes diálogos. 
No fundo, o que pode levar um escritor conotado com o neo-realismo a escrever um livro deste tipo e a considerá-lo o seu favorito? Pavese foi um resistente antifascista que sofreu as agruras das prisões de Mussolini e que participou nas guerrilhas de libertação. Foi membro do Partido Comunista Italiano e redactor do Unitá, o jornal oficial do partido. Era assumidamente agnóstico. A generalidade da sua obra enquadra-o nos escritores italianos com forte consciência social. Face ao conjunto da sua obra, Diálogos com Leucò é considerado um livro bizarro, extremamente bem escrito, mas dissonante da sua obra. Pelo menos à primeira vista. Nem sequer é a sua obra final, uma espécie de testamento de alguém que quer seguir outro caminho. Antes do seu suicídio em 1950, Pavese publicaria ainda mais quatro livros, com destaque para a sua obra mais conhecida dentro e fora de Itália, A Lua e as Fogueiras. Esta manifestação de heterodoxia, ou mesmo de heresia face a uma ideologia normalmente pouco permeável a este tipo de dissonâncias, terá fascinado Straub e Huillet que sempre gostaram de heterodoxias, apesar das suas firmes convicções. O resultado é um filme extremamente belo, marcado pelo ritmo das palavras e que seria, infelizmente, o último de grande fôlego em que Danièle Huillet participou.
* texto de Jorge Saraiva

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