quinta-feira, 30 de agosto de 2018

As Crianças (Les Enfants) 1985

As Crianças foi o último filme realizado por Marguerite Duras (1914-1996), uma das escritoras e intelectuais mais influentes do século XX. Tratando-se de cinema, ela é frequentemente lembrada pela escrita de Hiroshima, Meu Amor (1959), clássico de Alain Resnais, pelo qual recebeu indicação ao Oscar de melhor roteiro original. Sua própria obra cinematográfica, iniciada uma década depois, é constituída de filmes ousados, radicais, originais, dentre os quais têm destaque: Nathalie Granger (1972), A Mulher do Ganges (1974), India Song (1975), O Caminhão (1977) e Agatha e as Leituras Ilimitadas (1981). Nathalie Granger é o filme de Duras já presente aqui no blog My Two Thousand Movies. Discorre sobre tema muito semelhante ao de As Crianças: a inadaptação de uma criança à escola regular e a reação da família à situação. 
 O roteiro de As Crianças é de Duras, Jean Mascolo e Jean-Marc Turine. Foi baseado no conto Ah! Ernesto, escrito por ela e já previamente adaptado no curta-metragem En Rachâchant, de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Inicia com um diálogo entre Ernesto (Axel Bougousslavski) e sua mãe (Tatiana Moukhine), onde ele lhe comunica que não vai voltar para a escola porque na escola lhe ensinam coisas que não sabe. Decisão tomada pela criança em um bosque para o qual se dirige ao sair de um colégio retratado deserto. Sob uma árvore, ele tem uma visão da criação do universo e conclui que neste mundo em que tudo se criou de uma só vez, “nada vale a pena” — frase muito presente na obra de Duras, cujo primeiro filme solo, filmado após o maio de 68, foi sintomaticamente chamado de Destruir, Disse Ela (1969). A mãe lhe pergunta se a escola não vale a pena. Ele responde que não, ela saberia disso melhor do que ninguém. Jeanne (Martine Chevallier), a irmã (que logo depois também desistirá da escola), lhe questiona: “nem a música vale a pena?” Após breve hesitação, Ernesto responde que a música também não vale a pena. A mãe e o pai (Daniel Gélin, ator que já havia trabalhado com Duras justamente em Destruir, Disse Ela) respeitam e acatam a decisão do filho e vão à escola para comunicar ao professor a resolução tomada pela criança. Revelo aqui o inusitado: Ernesto e Jeanne têm aparência de adultos e são interpretados por atores com idade superior a 30 anos. A mãe explica ao professor que o filho tem sete anos, mas é muito grande, parece um bispo, um professor de filosofia, alguém que não se pode forçar a nada. As Crianças tem um tom cômico incomum na obra de Duras, tão marcada pela dor. As reações do professor e de um jornalista que tentam compreender as motivações de Ernesto reforçam esse traço divertido da obra. Os pais — estrangeiros, à margem, habitantes do subúrbio — são os cúmplices dos filhos. O cotidiano doméstico é singular. Grande parte do filme se passa na cozinha, onde a mãe se dedica a tarefas rotineiras, como descascar batatas. Esse ambiente, contudo, é de subversão: um refúgio, um espaço de resistência ao Estado e à sociedade organizada. As crianças confrontam tais instituições, questionando o papel educativo da escola formal. Cabe dizer aqui que em dois de seus livros com fortes matizes autobiográficas — O Amante (1984) e O Amante da China do Norte (1991) — a personagem que corresponde a Duras não tem nome, é apenas “a criança”. Nessas obras literárias, violência e sentimentos incestuosos também permeiam o espaço íntimo. Em Chuva de Verão (1990), livro escrito por Duras baseado no filme As Crianças (ela diz que o fez por não conseguir abandonar esses personagens), o erotismo entre os irmãos é explícito. No filme, se de fato presentes, as insinuações sexuais são muito tênues. Nesse formato, no plano sentimental, Duras nos fala mais de medo de abandono, tema igualmente caro a ela. As Crianças é um de seus filmes mais compreensíveis, sem nenhum radicalismo na estruturação da narrativa. As típicas disjunções entre imagens sonoras e visuais presentes em A Mulher do Ganges e India Song inexistem aqui. Quase todas as vozes ouvidas fora de cena correspondem aos personagens, com exceção da característica voz de Duras narrando justamente a partida de Ernesto, já um sábio, para a América. 
 A mãe de Duras foi professora primária. Seu pai, professor de matemática. Ambos franceses, decididos a viver a aventura colonial na Indochina. Duras e seus irmãos nasceram próximo a Saigon e o pai morreu quando ela tinha 4 anos. A mãe foi enganada por funcionários da administração colonial na compra de uma terra incultivável, inúmeras vezes alagada pelas águas do Pacífico. Viveram — Duras, a mãe e os irmãos — em situação de extrema pobreza e sofrimento familiar. Para incrementar os proventos financeiros, a mãe tocava piano em um cinema e com muita dificuldade garantiu a escolaridade de seus filhos. Duras se mudou para Paris aos 17 anos para estudar Matemática, Direito e Ciências Políticas. Foi membro da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra, filiada ao Partido Comunista Francês e ativa nos movimentos de maio de 68. Todos esses episódios foram refletidos em sua obra. Em Nathalie Granger, Moderato Cantabile e Agatha e as Leituras Ilimitadas existe uma certa obstinação das mães com a educação de seus filhos, particularmente com a necessidade de aprendizado do piano. A mãe de Nathalie Granger diz que se a filha não se dedicar à música estará perdida, visto que na escola convencional a menina apresentava comportamento violento. Anne Desbaresdes, a mãe de Moderato Cantabile (livro que foi adaptado em roteiro por Duras e filmado por Peter Brooks), diz a seu filho: “É preciso aprender piano, é preciso”. Em Agatha e As Leituras Ilimitadas, obra que aborda o amor incestuoso entre irmãos, Agatha pede ao irmão para que comunique à mãe sua vontade de não estudar mais o piano e a mãe a liberta dessa obrigação. Em As Crianças, vê-se situação semelhante: o filho não quer mais ir a escola, a irmã o segue na mesma decisão, os pais compreendem. 
A trilha sonora de As Crianças é do argentino Carlos d’Alessio, compositor do inesquecível tema de India Song. O filme recebeu Menção Honrosa do Júri Internacional na Berlinale. Após 1985, Duras voltou a se dedicar apenas à literatura.
O filme foi escolhido pela Carla Oliveira, que também escreveu este texto. 

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