segunda-feira, 6 de agosto de 2018

A Roda (La Roue) 1923

“Há cinema antes e depois de La Roue tal como há pintura antes e depois de Picasso” Jean Cocteau.

Abel Gance, “o Victor Hugo do cinema”, “o Cecil B. DeMille avant-garde”, entre tantos outros epítetos que recebeu pelo seu engajamento ao Romantismo numa proporção épica e artisticamente revolucionária, foi o cineasta megalómano por excelência, um inovador técnico guiado apenas pelas suas ambições visuais e narrativas na criação de um cinema-monumento inigualável ao dos seus contemporâneos. Cada uma das suas obras mais auspiciosas só poderia, portanto, conduzi-lo a um de dois resultados: a aclamação unânime ou a humilhação instantânea. Napoléon trouxe-lhe a primeira, La Fin du Monde a segunda. E se La Roue (feito antes de um e de outro) foi um caso bem-sucedido na época, as consequentes amputações que sofreu para uma melhor divulgação comercial (durava originalmente quase 9 horas, foi reduzido a 2h30), bem como a ausência de uma restauração canonizadora semelhante à de Napoléon na década de 80, levaram-na a ser relegada da vanguarda de grandes obras cinematográficas que em tempos ocupou. Em 2008, finalmente, La Roue foi restaurado numa edição produzida pela Flicker Alley com 4h30 de duração, sendo a mais completa comercialmente disponível, reimplantando o deslumbre do talento visionário de Gance em novas audiências. É esta que colocamos disponível.
 Autêntica tragédia grega (a começar pelo nome do protagonista) de alturas olímpicas, é preso a um triângulo incestuoso que observamos Sisif, um maquinista atormentado pela culpa sexual inerente à paixão que nutre pela filha adoptiva, Norma, enquanto o vértice em falta é ocupado pelo seu filho biológico Elie, inconscientemente apaixonado pela rapariga de quem julga estar ligado pelo sangue. Esta intriga encontra-se desenvolvida por uma linguagem visual rica, capaz de transformar o melodrama diegético num trabalho de ressonância emocional extraordinário. Se são fascinantes as sequências que envolvem os descarrilamentos e conduções das locomotivas colossais (onde é sublimado o amor magoado e proibido de Sisif) não menos o são os eventos passados à escala humana. La Roue é um dos exemplos superlativos dessa corrente cinematográfica de tirar o fôlego que foi o Impressionismo Francês, onde permite o espectador experienciar, por uma série de dispositivos fílmicos, os turbilhões emocionais e pulsões fatalistas que assolam o seu leque principal de personagens. O pathos mais ardente é criado pelos planos subjectivos de Sisif, à medida que o ciúme, a culpa e, finalmente, a cegueira o domam, os seus impulsos auto-destrutivos são transmitidos intensamente pela montagem rápida pré-eisensteiniana que confere ao filme um ritmo periclitante e frenético nos momentos em que este pretende provocar o seu suicídio, e as paixões consumidoras de Sisif e Elie surgem liricamente representadas por uma série de sobreimpressões e sequências fantasistas. 
E o que é “a Roda” do título a não ser o cerco periódico que encarcera os homens com os seus destinos fatais e desejos inexauríveis, o eterno ciclo de vida e morte, amor e ódio, crime e perdão? Conformar-se com ela é aceitar dar as mãos numa farândola fraternal, a uma altura onde se está mais perto dos deuses que dos homens. Como Sísifo, que cego e cansado acolhe a serenidade do derradeiro repouso, deixamos o filme em estado de aceitação. A Roda continuará a girar.
* Filme escolhido pelo Duarte Mata, que também escreveu este texto, de propósito para este ciclo. 

Parte 1
Parte 2
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