sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Quando os Sinos Dobram (Black Narcissus) 1947

Quando os Sinos Dobram, tradução portuguesa para Black Narcissus, é o filme visualmente mais belo de Michael Powell e de Emeric Pressburger. Para isso contribuiu o facto de ter sido rodado nos Himalaias, num cenário de grande beleza natural, o que exigiu meios técnicos prodigiosos para a época, mas também pela singularidade do palácio que serve de convento para as freiras. Por isso ganhou os prémios de melhor cinematografia (Jack Cardiff) e melhor direcção artística (Alfred Junge).
A utilização da cor, tal como em Um Caso de Vida ou de Morte, é absolutamente deslumbrante, só tendo paralelo no tratamento que lhe deu Douglas Sirk na década seguinte; o enquadramento dos objectos e de alguns planos, a sua riqueza pictórica, remetem-nos muitas vezes para aquilo que vimos em Parajdanov e Tarkovski, mas eles só surgiriam vários anos depois. Logo por aqui percebemos o carácter pioneiro de Black Narcissus. Mas por mais excepcionais que sejam os elementos formais, não são estes que mais me impressionaram. O filme relata a odisseia de cinco freiras que são destacadas para um palácio adaptado a convento, numa remota região dos Himalaias, de clima agreste e gente pobre, mas afável. Pertencem a uma ordem religiosa trabalhadora e não meditativa, o que implica relações estreitas com a comunidade, para quem se propõem trabalhar nas áreas da educação e da saúde. O que é absolutamente espantoso é que, embora envolvido num ambiente religioso, é um filme sobre a dessacralização a vida das próprias pessoas que nela participam, em particular das freiras. Black Narcissus exala sensualidade por todos os poros. Martin Scorsese chegou a referir-se a este filme como um dos primeiros grandes filmes eróticos da história do cinema e o próprio Michael Powell a ele se referiu como a mais erótica obra que realizou. Este é o principal paradoxo de Black Narcissus; o profano a irromper no plano do sagrado, como uma inversão de uma hierofania. A assumpção do corpo em detrimento da espiritualidade, dos sentidos sobre a racionalidade da fé e da devoção. Perdoem-me a deriva filosófica, mas Nietzsche teria gostado deste filme. É a recusa total do ideal ascético, que serviu de base à moral cristã e que o genial filósofo alemão tão bem soube denunciar. É a irmã mais velha, a jardineira que decide plantar flores em vez de vegetais e que afirma que desde que chegou a este lugar se tem recordado de muitas coisas que julgava estarem sepultadas. Face à beleza agreste do lugar que interfere e modifica a própria forma de estar das freiras, só se pode viver ou como um santo ou de forma puramente hedonista. Nenhum meio termo é possível. Quando tudo começa a soçobrar, quando se completa a dessacralização das personagens e a desocultação da essência de cada personalidade, impera a paixão recalcada, a inveja, o despeito e o ciúme. No mundo físico terreno, ninguém está imune à tentação, ninguém pode ostentar uma superioridade moral como anuncia a fé cristã. Todos somos essencialmente terrenos e mundanos, no sentido de que fazemos parte deste mundo. O filme já o anuncia desde o início: A Madre Superiora, mulher jovem e bonita, é constantemente assaltada pelas recordações da sua Irlanda e do seu amor que nunca se concretizou. Ela sublima as memórias, mas elas regressam de forma poderosa. Dir-se-á que perante a magnificência da paisagem, cada uma delas se sente confrontada com a sua verdadeira integridade e com a sua própria história pessoal. Afinal o que leva as freiras a optarem por esta forma de vida: uma vocação transcendental, ou um refúgio pela decepção que o rumo das suas vidas tomou?
O final repleto de sensualidade mesmo na tragédia, caminha para um apocalipse tão anunciado, quanto inconclusivo. Não se pode parar o vento, nem remover as montanhas, ou obscurecer a luxúria das flores. À Madre Superiora resta partir antes que se volte a apaixonar e acabe por renegar os seus próprios votos. Guarda o essencial, ou o que julga ser: a sua vocação. Mas ela já não será a mesma. Nunca deixará de pensar no amor antigo que um dia perdeu, nem num mais recente que não chegou a encontrar. E neste simbolismo do desmontar de feira, alguns viram a despedida da Grã- Bretanha da mais importante jóia do seu império: a Índia. 
Por fora e por dentro, Black Narcissus é um filme belíssimo. Também pelo que mostra e pelo que sugere. E ainda pelo que nos faz pensar e sentir. O cinema não produziu muitas obras assim. Por isso, perdê-lo é um sacrilégio. 
* texto de Jorge Saraiva

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