quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Um Caso de Vida ou de Morte (A Matter of Life and Death) 1946

Todos os filmes Michael Powell e Emeric Pressburger são especiais. No entanto, Um Caso de Vida ou de Morte (A Matter of Life and Death) ocupa um lugar muito particular no universo cinematográfico da dupla. As razões prendem-se com o cariz insólito do tema, mas também com o facto de ser o filme mais consensualmente amado pela crítica. 
 Um Caso de Vida ou de Morte é um filme absolutamente insólito, uma espécie de conto de fadas para adultos. Tudo começa quando o avião de Peter David Carter (Larry Niven) é derrubado, já na fase final da Segunda Guerra Mundial. Aquelas que supostamente serão as suas derradeiras palavras são para uma americana desconhecida, June (Kim Hunter), uma operadora de rádio. Estranhamente, o aviador não morre e enquanto é aguardado no lugar onde vivem os mortos, acorda na Terra, embora não saiba verdadeiramente que está vivo. O filme apresenta-nos um conjunto de peculiaridades absolutamente surpreendentes. A primeira, é que o mundo dos mortos, possivelmente o Céu, é sempre a preto e branco, enquanto a cor só existe na vida terrestre. A segunda mostra-nos que o mundo dos mortos é um mundo de justiça e equidade, como se de uma racionalização absoluta se tratasse, mas o mundo da Terra é o do amor e da imperfeição dos sentimentos. A terceira consiste no facto da relação entre os dois mundos se fazer nos dois sentidos: os serviços centrais e (quase) sempre perfeitos da morte, enviam um emissário que faz parar o tempo para resgatar a vida de Carter (absolutamente fantástica a cena do jogo de ténis de mesa suspenso com a bola no ar); na fase final, é o próprio Carter que se vai defender ao outro mundo levando a sua amada June e o seu médico. Parece óbvia a relação com a Alegoria da Caverna, o célebre texto de Platão. No entanto se o cenário tem algumas semelhanças, as diferenças são óbvias. Platão desvalorizava o mundo sensível, considerando-o ilusório e aparente e toda a nossa vida aqui deve ser um esforço para ascender ao mundo da verdade e da permanência, Mais vale ser escravo no mundo da luz, do que rei no mundo da sombra. Mas no filme de Powell e de Pressburger, não existe essa visão maniqueísta tão típica do pensamento do filósofo grego. Aqui parece quase prevalecer uma visão ateísta ou, pelo menos, agnóstica sobre as vantagens do Céu. Por muito justo e tranquilo que seja o outro mundo, este é sempre preferível. É neste que pulsa a vida, a imperfeição e o amor. E se se enganaram (uma vez sem exemplo) ao deixarem viver quem deveria ter morrido, será profundamente injusto reclamarem do seu erro. Sobretudo quando está em causa o amor que existe entre Peter e June. É do lado de cá que está a felicidade, onde residem os afectos e a vida. Do lado de lá está a perfeição gelada. Por isso, quando o amor vence a razão e se estabelece uma nova data para a morte de Peter, alguém diz que é demasiado generosa. Todos temos que morrer um dia, mas quantos mais anos pudermos adiar a data da nossa morte, tanto melhor. Voltando a Platão: no diálogo Fédon, Sócrates aparece extremamente feliz no dia da sua morte, porque se vai libertar do seu corpo e irá para um mundo (o Hades) que ele acha que é muito melhor. Em Um Caso de Vida ou de Morte, Peter e June ficam extasiados porque depois de terem subido as escadarias do Céu, podem voltar à Terra para poderem viver o seu amor. 
 Na sua aparente ligeireza e bom humor, Um Caso de Vida ou de Morte é um filme profundamente filosófico. Mais do que uma reflexão sobre o significado da vida, há um apelo para que ela seja vivida o melhor possível e durante tanto tempo quanto pudermos. Por isso transcende tempos, lugares e vontades, para se tornar numa obra absolutamente essencial.
* Texto de Jorge Saraiva.

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