segunda-feira, 4 de julho de 2016

O Último Ano em Marienbad (L'année Dernière à Marienbad) 1961

O Último Ano em Marienbad parte de uma colaboração entre Alain Resnais e o escritor Alain Robbe-Grillet. O resultado é um dos filmes mais controversos de toda a história do cinema, fervorosamente amado por uns, visceralmente odiado por outros e incompreendido pelos restantes.
Este é o principal mérito de O Último Ano em Marienbad. Como um filme radicalmente experimental, não pode deixar ninguém indiferente. O conjunto de experiências visuais e de conceitos nele incluídos, o mais célebre dos quais é o de obra aberta, tornaram-no numa referência incontornável mesmo para os seus detractores. E, afinal tudo em Marienbad é aparentemente simples: a câmara em longos travellings vai filmando as salas de um palácio que serve de hotel, onde todas as personagens humanas estão petrificadas confundindo-se com a austeridade gelada das salas e dos objectos. Uma voz em off vai repetindo as mesmas frases, enquanto um órgão se ouve em fundo de forma cada vez mais opressiva. Percebemos de imediato que as personagens não têm vida, ou são reduzidas a um mero simulacro. Assistem a uma peça de teatro, onde os dois actores (masculino/feminino) repetem as mesmas palavras que ouvíamos em off. E depois conversam, mas as suas palavras são absolutamente vazias e banais, frases incompletas e entrecortadas, como se apenas prolongassem a irrelevância da «paisagem física». No centro há uma mulher com pose esfíngica que é abordada por um homem que incessantemente a persegue com a evocação das memórias do ano anterior vivido no mesmo local. O filme desdobra-se em múltiplas ambiguidades, a principal das quais é a do jogo entre a verdade e a mentira: ele assegura que estiveram juntos no ano anterior, ela nega-o, porque não o conhece de lado nenhum. O marido, a outra personagem viva do filme, vai-se perdendo num jogo impossível, porque ganha sempre. e numa carreira de tiro. Os pseudo-amantes vão conversando sobre o significado de estátuas e sobre memórias, num jogo de claro escuro aparentemente aleatório, mas que vagamente evoca o «último ano» (o derradeiro, ou o anterior). E a voz off vai repetindo as frases iniciais. E o órgão, o monstro que nunca deixa respirar, nas palavras de Arvo Pärt, oprime-nos até à exaustão.
Na história do cinema não há nenhum filme parecido com O Último Ano em Marienbad. Nem em Resnais, nem na nouvelle vague nem em mais lado nenhum. É um gelo que queima até às entranhas. Uma infinita circularidade que se prolonga numa eternidade sem tempo. A ambiguidade aguça-nos a expectativa para encontrar uma chave que descodifique o indecifrável: afinal, neste jogo de ilusões perpétuas, quem está a mentir? Quem vive e quem já está morto? Na busca incessante de uma resposta sabemos que o movimento é tão infrutífero quanto estimulante. Nunca saberemos a resposta, porque as coordenadas de interpretação são aquelas que nós quisermos. A apreensão do filme dá-nos um estranho mas genuíno sentido de propriedade: cada um apropria-se do filme como quiser e todos os sentidos de posse são legítimos, na tal materialização do conceito de obra aberta que aqui faz todo o sentido. Mas é estimulante, porque permite uma fecunda troca de opiniões, uma partilha incessante quase naquele sentido de que Jaspers escrevia de que mais importante do que a posse da verdade, é a sua busca.
Permitam-me um toque pessoal. Recentemente passei o filme a alguns alunos meus (com uma idade média de 18 anos) e mal o filme acabou, eles foram todos discutir, cada um tentando persuadir os outros sobre a justeza da sua interpretação. Dos quase 40 filmes que passei ao longo do ano isto não aconteceu com mais nenhum. Resnais ficaria contente.
O filme foi premiado em Veneza, mas teve, na generalidade, uma recepção fria, impulsionado pela estranheza que provocou. Apesar do tempo ter amenizado essa estranheza, a ela nunca se seguiu o entranhamento de que falava Fernando Pessoa num célebre slogan. Mas isso é absolutamente irrelevante. Só amamos verdadeiramente aquilo que não compreendemos. Não há aqui nenhum hermetismo pedante, a vontade de criar uma espécie de metafísica de trazer por casa, como nos filmes de Malick, Von Trier, ou Greenaway. Há apenas um elogio do subjectivismo, das interacções complexas, da impossibilidade de encontrar modelos explicativos lineares. Como diria o próprio Greenaway, numa frase muito mais feliz que a generalidade dos seus filmes, Marienbad é o único filme da história do cinema em que o tema principal é o tempo. Não apenas enquanto memória, mas enquanto entidade metafísica.
Toda a gente tem um melhor filme da história do cinema. O meu é este.
*Texto de Jorge Saraiva.

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