O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo segundo convidado é o crítico de cinema brasileiro Bruno Andrade, que escolheu Querido Diário de Nanni Moretti, e nos diz de sua justiça:
Sinopse: "Querido Diário" é um misto de comédia e documentário autobiográfico dirigido e interpretado por Nani Moretti. O filme, que valeu ao cineasta o prémio melhor realizador em Cannes em 1994, divide-se em três partes. Na primeira, Moretti percorre as ruas de Roma, no Verão, de vespa, claro. Na segunda, viaja com um amigo pela Sicília e na terceira consulta vários médicos por causa dum linfoma.
As palavras do Bruno Andrade:
"1. As imagens que chegaram da Itália, ainda no início da atual crise, das pessoas nas varandas dos seus apartamentos, embaladas pelas mesmas canções; vídeos no Youtube, no Instagram, lives do Facebook; condomínios fechados, mas também antigos prédios próximos a piazzas e vias; sets que vão de Adriano Celentano a Corona (a banda italiana capitaneada pela brasileira Olga Maria de Souza), o compartilhamento e a socialização; a descontração, essa verdadeira arte de viver dos italianos... Tudo isso estranhamente me faz pensar na passagem em que Nanni Moretti diz querer fazer um filme só sobre casas, sobre as fachadas das casas, enquanto passeia de Vespa por vários bairros romanos. A mobilidade, a desenvoltura, a extroversão. Impossível, diante dessas imagens dos cidadãos encontrando novas formas de convívio, não lembrar de Moretti e do seu filme. Dialética estranha, de certa forma inquietante, tão italiana, essa da deambulação e do ócio. Caro diario parece ocupar-se totalmente dela nos seus três episódios: o homem que vagueia livremente, solitariamente pela cidade e chega à orla de Ostia como que num circuito fechado; as ilhas, a vontade de isolamento, mas também a vontade de aprender a dançar; a doença, a busca pela cura, a necessidade da comunicação; entregar-se ao desconhecido, colocar-se nas mãos do outro, aceitar aquilo que a vida coloca nos nossos caminhos. E ao fim de tudo um copo d’água que revigora corpo e espírito.
Não consigo pensar em outro filme que fale tantas coisas sobre o presente momento.
2. Muita coisa a aprender com os italianos, em todas as horas, principalmente em matéria de catástrofe (desde, é óbvio, os tempos do império): foram eles que se prepararam antes de todos para aquilo que seria o futuro da comunicação (a intuição que fez Moretti pegar o bastão do Rossellini tardio e rascunhar a partir dos anos 1990 aquilo que mais tarde se confirmaria com a selfie, o vídeo-diário, as lives); foram eles que viram primeiro o seu cinema popular sucumbir completamente pela idiotização televisiva do público (segunda metade dos anos 1980); foram eles que elegeram primeiro um palhaço midiático proto-fascista, foram eles que desde então precisaram lidar com isso (primeira metade dos anos 1990 - as duas coisas, por sinal, idiotização televisiva e eleição de Berlusconi, interligadas); são eles que estão mostrando como lidar com essa realidade que potencialmente leva a um filme de Tsai Ming-liang (nada mau enquanto filme, mas um tanto trevoso para se viver no dia-a-dia), transformando-a em um filme de Moretti (mesmo que ao som do Azzurro de Adriano Celentano).
3. Num país que reúne Adriano Celentano e Nanni Moretti sempre pode acontecer coisas interessantes, leia-se paradoxais por natureza: Moretti, ex-militante do PCI, cruza com um morador de Casal Palocco - "cães de guarda atrás dos portões, pizza pré-pronta, videocassete, pantufas", em suma, o equivalente romano do eleitor do PSDB/DEM/NOVO - e começa uma conversa.
4. O verdadeiro contraplano de todo filme italiano, de todo o cinema italiano (neorrealismo, commedia all'italiana, peplum, melodrama, giallo, mesmo o cinema de poesia e o faroeste/filme de pirata/poliziottesco nas mãos de Sollima e Damiani), é o social.
5. Uma força regeneradora parece atravessar todo o filme, indescritível como tal, mas perceptível nesses passeios por Roma, nas viagens marítimas rumo às ilhas, e mesmo nas inúmeras consultas com médicos de todo o mundo. Essa força parece mais e mais necessária para enfrentarmos os desafios dos dias vindouros. Inevitavelmente."
Amanhã, a escolha de Billy Woodberry.
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