segunda-feira, 9 de março de 2020

Humilhados / O Regresso do Filho Pródigo (Umiliati) 2003

A descoberta da obra de Elio Vittorini feita com Sicília (1999) possibilitou num curto espaço de tempo a realização de vários filmes por parte de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, nalguns casos surgidos como variações de obras anteriores. É o caso de L`arrotino (2001) de sete minutos com takes alternativos da cena final de Sicília, ou seja, do diálogo entre o protagonista e o amolador. Igualmente de Sicília é Il Viandante (cinco minutos) que retoma o diálogo entre o filho e a mãe. Finalmente de Operários Camponeses há ainda Dolando, com apenas sete minutos.
Humilhados e o Regresso do Filho Pródigo são igualmente duas variações sobre Operários Camponeses. Mas, desta vez não se trata de retrabalhar o material fílmico, mas de buscar outro excerto da obra de Gente de Messina de Vittorini. Embora se trate do mesmo contexto, este filme não é uma variação daquele. Voltamos à mesma comunidade siciliana e à floresta onde os actores leem ou recitam excertos do referido livro. Estamos na presença da mesma comunidade de trabalhadores que cria uma cooperativa na Itália recém-libertada do fascismo. Na primeira parte recebem um emissário do governo que tem a função de cadastrar as propriedades existentes no sentido de as devolver aos seus anteriores donos. O filme é, todo ele, defensor de uma concepção marxista da economia. Está aqui implícita uma infindável discussão entre legalidade e legitimidade a propósito da questão da propriedade. Pela lei, as terras e as casas devem pertencer aos seus antigos proprietários em nome da ordem burguesa de aquisições e heranças. Mas se são os trabalhadores que trabalham a terra, esta deve legitimamente pertencer-lhes a partir do princípio marxista de que deve pertencer aos trabalhadores o controlo dos meios de produção. Esta discussão transportou-me para o período subsequente ao 25 de Abril em Portugal quando havia uma acesa polémica sobre a posse da terra na zona da Reforma Agrária. A terra que estava seca e inculta foi irrigada e cultivada pelos trabalhadores que a ocuparam, tornando-a fértil. A pseudo generosidade do proprietário consiste em arrendar a terra o que só fará aumentar os seus lucros e reforçar a exploração. Em vez de ter uma terra inculta, receberá o lucro do trabalho feito pelos outros. Na segunda parte do filme alguns membros da cooperativa são confrontados com três homens armados e discutem sobre a rentabilidade económica do trabalho que arduamente desenvolveram de reconstruir a propriedade ocupada. O trabalho torna-se pouco rentável face à energia despendida, sobretudo se se tiver em conta que produzindo de forma industrializada, as grandes potências conseguem colocar os mesmos produtos a metade do preço. A partir daí desenvolve-se com uma análise da relação possível entre as grandes empresas capitalistas multinacionais e as pequenas empresas de aldeia. O filme termina com uma das imagens mais icónicas de toda a extensa filmografia de Straub e Huillet: uma mulher descalça, sentada à porta da sua casa, com o rosto ocultado pelas mãos. 
Paradoxalmente, este filme acaba por ter uma dimensão muito mais explicitamente ideológica do que Operários Camponeses. Se na primeira adaptação de Mulheres de Messina, o texto demora-se muito nas memórias e nos conflitos entre os membros da comunidade, nesta curta metragem são as questões da posse da terra e do funcionamento da economia capitalista que são abordados. Pese embora as décadas que nos separam da obra de Vittorini, a essência dos problemas mantém-se. E por isso a sua actualidade é inatacável.
Legendas em francês.
* texto de Jorge Saraiva

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