Foi a este romance inacabado de Kafka (mais um fascínio pelas obras incompletas como tinha sucedido com Brecht e Schoenberg, entre outros) que Straub e Huillet foram buscar inspiração para Relações de Classe. Danièle Huillet frisava que o filme se chamava Relações de Classe e não Luta de Classes ao mesmo tempo que sublinha que «Kafka é o único grande poeta da civilização industrial, ou seja, de uma civilização na qual as pessoas dependem do trabalho para sobreviver». (folhas da Cinemateca). Com uma notável fotografia a preto e branco, filmado em 35 mm, o filme é sempre falado em alemão, respeitando o idioma original do texto. Tirando algumas imagens iniciais de Nova Iorque e da estátua da Liberdade e, mais à frente, do rio Missouri, foi totalmente rodado na Alemanha, como de costume com som local captado em simultâneo com as imagens. É considerada como uma das obras mais acessíveis dos dois realizadores, o que, paradoxalmente, acaba por o tornar num corpo quase estranho relativamente ao conjunto da sua filmografia. Em primeiro lugar porque aqui há um verdadeiro trabalho de adaptação de uma obra literária para a linguagem cinematográfica, movimento a que ambos tinham sido quase sempre avessos, com excepção dos filmes iniciais. Portanto não se trata de transcrever na íntegra, ou em grandes excertos, obras literárias ou musicais. Aqui há um verdadeiro acto de construir um argumento que, aliás vai realçar alguns aspectos particulares da obra em detrimento de outros. Por outro lado, porque se apresenta como um filme próximo de alguma «normalidade» pelos padrões comuns uma vez que existe aquilo a que poderíamos chamar em termos simplificados «uma história» para ser contada. Significa que estamos em presença de um filme convencional? Nem por sombras! De imediato pela própria escrita de Kafka. Adaptar as suas obras ao cinema é uma tarefa particularmente espinhosa, já que estamos na presença de uma escrita labiríntica, frequentemente absurda e profundamente conceptual. Que o diga Orson Welles que não se saiu particularmente bem quando transportou O Processo para filme, isto para já não falar do desastre de Soderbergh quando fez o mesmo com O Castelo, aliás a sua obre prima. Mas da parte de Straub e Huillet houve uma compreensão mais fina das características da escrita e por isso evitaram esse princípio redutor de normalização de que as adaptações referidas padeceram. Os momentos de absurdo não são suavizados, mas reforçados, não há uma pretensão de linearidade narrativa, os ângulos de filmagem desafiam os métodos tradicionais, a direcção de actores opta por uma rigidez e artificialidade que aqui são particularmente bem-vindas. Por isso, Straub e Huillet alcançam sucesso onde outros fracassaram. Por outro lado, América é um romance onde segundo Straub e Huillet «tudo se compra e se vende» Interpelado numa entrevista sobre o facto de terem valorizado os aspectos sociais, Straub não o nega, mas essa é a sua interpretação do livro, onde a despersonalização causada pelas relações de classe típicas do capitalismo, gera a marginalização, o abandono e um mundo sem justiça. O encontro entre Kafka e Marx se à primeira vista pode parecer improvável, acaba por não ser assim tão descabido…
Relações de Classe foi distinguido com uma menção honrosa no Festival de Berlim. Para quem se quiser relacionar com a obra dos dois cineastas e não quiser fazer um percurso rigidamente cronológico, poderá começar por aqui ou por Crónica de Anna Magadalena Bach. Não porque sejam filmes menores que é uma coisa que não existe na sua filmografia, mas porque são aqueles que provavelmente causarão menor estranheza. As grandes aventuras podem vir depois…
* texto de Jorge Saraiva
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