domingo, 15 de dezembro de 2019

Continental Films: o busto de Hitler nos Campos Elísios coberto de casacos e chapéus de chuva.

A rubrica "Quem Programa Sou Eu" tem sido uma constante ao longo de 2019, levando já seis edições. Nesta rubrica os nossos leitores são convidados a programar um ciclo, com cerca de 10 filmes, da sua preferência, ou sobre um determinado assunto. A Inês Esteves, uma já antiga seguidora do My Two Thousand Movies, lançou-me um desafio no mês passado, que tem em tudo a ver com o espírito do blog: um ciclo sobre a Continental Films, uma produtora francesa com capitais alemães durante a ocupação Nazi. Uma idéia excelente, para a qual lançamos mãos à obra imediatamente.
Para ficarmos a conhecer um pouco sobre o que foi a Continental, e em que circunstâncias se destacou, vamos ler a introdução escrita pela Inês.



"Estamos no início da década de 40 do século XX, a França encontra-se sob ocupação alemã e o governo francês está exilado em Vichy por essa época.
O panorama cinematográfico francês nos anos 40 estava estagnado, atravessava um período de crise, com muitos estúdios a fechar e a mobilização em torno da guerra era geral. Grandes nomes como Renoir tinham sido forçados ao exílio devido à ocupação nazi, contudo, uma certa crise económica vinha já de trás, de finais da década de 30 mas, ainda assim, a França era uma das maiores indústrias de cinema europeias.
É por isso importante para os alemães controlá-la e é assim que nasce a nova empresa de produção, a Continental Films, uma produtora cinematográfica franco-alemã, instalada em Paris em plena Ocupação. Paris era a cidade onde muitos soldados alemães se deslocavam em licença em busca da diversão e do prazer. A Continental era uma empresa de direito francês e capital alemão. Durante a sua breve existência, entre 1940 e 45, a Continental Films produziu cerca de 30 filmes. Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazi e das figuras mais próximas de Hitler, nomeia para director da Continental, um alemão veterano da I Grande Guerra e amigo de Göring, homem de negócios, já ligado à UFA - Universum Film AG ( era o director de produção da UFA), francófilo e próximo do partido nazi, um homem exigente, rico e megalómano, falamos de Alfred Greven.
A ideia de Goebbels era fundamentalmente fazer dinheiro com a Continental Films, produzindo filmes ligeiros, de entretenimento e comédias, captando o estrelato francês para os filmes, aproveitando que a indústria francesa detinha a distribuição pelos Países Baixos, pela própria França, Espanha, Itália, para onde o cinema francês exportava. A Alemanha estava fora deste circuito, já que era o cinema alemão que, na perspectiva dos nazis, devia ser o de conteúdo, como o de carácter nacionalista. A propaganda estava também a cargo do cinema feito na Alemanha e era o cinema produzido na Alemanha que devia permanecer como o dominante, talvez por esse motivo, a Continental tivesse dificuldades de financiamento, porque o capital era quase todo canalizado para a UFA. A Continental fora criada com uma ideia de negócio e para entreter os territórios ocupados com filmes puramente desprovidos de conteúdo e abrilhantados por estrelas como Danielle Darrieux e Fernandel.
A Continental tem uma história misteriosa e paradoxal e, por incrível que pareça, chega a gozar duma liberdade que é, no mínimo, bizarra, dada a conjuntura sócio-política daqueles anos, e os seus estúdios produziram filmes vanguardistas e inovadores.
Não estava nos planos de Alfred Greven seguir as orientações de Joseph Goebbels, que ao chegar ao seu escritório nos Champs Elysées todas as manhãs, pendurava o sobretudo e o chapéu de chuva no busto de Hitler.
Alfred Greven é, como disse, um francófilo, e não tem dificuldade em fazer-se rodear dos melhores e mais talentosos profissionais do cinema que se fazia em França, desde argumentistas a realizadores, compositores a técnicos e actores e, para isso, fazia uso dos seus métodos ora de sedução ora de chantagem, conforme a situação. É o caso de Georges-Henri Clouzot que é convidado por Greven, que admirava muito o seu trabalho de cenógrafo, a chefiar o departamento de cenografia da produtora franco-alemã. Clouzot pôde mostrar o seu talento e a partir daí, aproveitar a oportunidade para realizar nos estúdios da Continental, duas das suas grandes obras: “Le Corbeau” e “L’Assassin Habite au 21”. Além disso, as pessoas precisavam mesmo de trabalhar ainda que, fazendo-o para a Continental Films, lhes valesse o cliché de colaboracionistas, Clouzot esteve vários anos impossibilitado de filmar depois da Libertação devido à sua ligação à produtora franco-alemã. A verdade é que muitos acumulavam a actividade de profissionais nos estúdios da Continental com a actividade clandestina na Resistência, por exemplo.
A situação daqueles tempos sombrios era complexa, porque havia muitos profissionais que não conseguiam de todo trabalho durante a ocupação nazi e foram captados pelos estúdios da produtora, tanto vedetas consagradas como jovens talentos que se lançaram na Continental, e é neste aspecto que Alfred Greven teve um papel verdadeiramente ambíguo. Fosse por ser um homem de negócios acima de tudo e extremamente exigente, fosse por ser um conhecedor e amador da cultura francesa, Greven fez -se rodear dos melhores e entre os melhores estão evidentemente judeus e comunistas; alguns trabalharam clandestinamente na Continental, sem créditos já que o seu nome jamais poderia ser publicitado ou teriam de o substituir por pseudónimo ou nome falso, mas outros, pelo contrário, tiveram um papel destacado, como foi o caso do paradigmático actor Harry Baur que reunia todos os requisitos para ser persona non grata aos nazis: era inglês, agente-duplo, comunista, judeu mas era uma estrela do teatro e cinema franceses, um grande actor, uma figura incontornável da interpretação em França. O seu desempenho brilhante como protagonista no filme “L’Assassinat du Pére Noel”, o cativante Monsieur Cornusse que representa o homem bom e sonhador, indignou os nazis: “Como era possível um judeu estrelar um filme alemão?!”, na opinião do crítico e realizador Bertrand Tavernier, autor do documentário sobre cinema em Paris durante a Ocupação - “Laissez Passer”, poderia entender-se como um acto de provocação por parte de Harry Baur a sua presença na Continental. Harry Baur viria a morrer devido a brutais maus tratos na prisão às mãos da Gestapo. Há ainda outros casos de judeus como o do compositor Roland Manuel (Levy) que criou música para filmes como “Inconnu dans la Maison” ou do cineasta Raymond Bernard, assim como elementos da Resistência e também russos trabalhavam para a Continental pois já eram profissionais da indústria cinematográfica francesa e estavam em França desde a Revolução Russa.
Certo é que Alfred Greven percebeu desde logo que tinha de fazer este jogo duplo se queria tornar a Continental numa Hollywood europeia. Há aliás, um episódio curioso, quando Greven tenta levar Jacques Prévert para a Continental, o que Prévert não aceitou, mas terá dito a Greven que este jamais alcançaria o sucesso de Hollywood porque a Continental não tinha judeus e eles eram os melhores. O que Prévert desconhecia era que Alfred Greven já o tinha percebido e esse era o seu segredo mais bem guardado.
Alfred Greven queria acima de tudo produzir cinema de qualidade, e conseguiu-o com uma independência notável, dadas as circunstâncias, quer em relação ao governo alemão, quer em relação ao governo francês de Vichy e produziu filmes transgressores e subversivos, no conteúdo e ou na forma.
Temos o exemplo de “Le Corbeau” de Clouzot, um filme que não passaria na censura de nenhum dos governos, pois para os alemães, o filme que retrata um vilarejo que é contaminado por uma praga de cartas anónimas assinadas por um corvo que delata os habitantes, fazendo pairar um clima de terror psicológico e desconfiança entre os membros daquela comunidade, desencorajava a denúncia anónima de que a Gestapo muito se alimentava e era, por isso, na perspectiva dos alemães, um filme ao serviço de Vichy. Para outros era um filme anti-francês, desde logo, o governo francês, conservador e católico, considerou “Le Corbeau” um filme imoral que fala de questões malditas como o aborto e a droga. Os comunistas e a resistência também não o viam com bons olhos pois era produzido com dinheiro nazi. O certo é que, independentemente da ambivalência do filme, que questiona de que lado está o bem e de que lado está o mal (onde estão os bons e onde estão os maus), o que ele denuncia é a cegueira estúpida das multidões que seguem sedentas e dominadas pela cólera, prontas a linchar o primeiro que lhes apareça à frente e isto é uma impiedosa crítica social de que Clouzot lança mão.
O filme “La Symphonie Fantastique” de Christian-Jaque, é claramente uma exaltação da França. Um filme sobre Berlioz, o patriotismo, em que entram personagens como Victor Hugo, o que elevava a moral e auto-estima do país ocupado. Goebbels, furioso, chama Greven a Berlim, depois de ver o filme, para lhe lembrar que a Continental não devia jamais fazer filmes a enaltecer o nacionalismo francês, que não era essa a sua função mas sim filmes comerciais, ligeiros, para fazer adormecer o espectador.
A Continental levou para o cinema obras da literatura francesa nos filmes de André Cayatte “Au Bonheur Des Dames”, adaptada dum romance de Émile Zola; “La Fausse Maîtresse” a partir da obra de Balzac e “Pierre et Jean” da de Guy de Maupassant; ou “la Main du Diable” realizado por Maurice Tourneur, inspirado numa novela do escritor e poeta francês Gérard de Nerval; “L’Assassinat du Pére Noel” de Christian-Jaque a partir do romance de Pierre Véry; “Les Caves du Majestic” realizado por Richard Pottier a partir do romance de Georges Simenon, o que confirma a densidade e independência do cinema que se fez nos estúdios dirigidos por Greven.
Por outro lado, o filme de Maurice Touneur, “La Main du Diable”, é bastante original porque subverte a fórmula do suspense: os momentos de maior perigo e tensão são precedidos de cenas cheias de gente, confusão e barulho (a cena inicial do jantar na estalagem ou a da vernissage), ao vermos a frenética e confusa movimentação da multidão sabemos que algo vai acontecer, ao contrário da fórmula habitual em que é o silêncio, as sombras, a solidão que anunciam o momento de revelação do perigo. 
A Continental Films tal como a figura enigmática de Alfred Greven estiveram envoltas numa névoa de mistério que ultimamente tem vindo a ser dissipada graças ao trabalho de historiadores e críticos de cinema, cineastas e investigadores contemporâneos. 
Os filmes dos estúdios da Continental não colhiam a simpatia da geração da Nouvelle Vague e Cahiers du Cinema por exemplo, e acabaram por ficar exilados no território do esquecimento pelas gerações que se seguiram à Libertação da França e ao fim da II Guerra. 
Foi absolutamente fundamental ter distância para se escrever a História e ter a coragem e curiosidade para investigar os arquivos da empresa e a produção cinematográfica financiada com dinheiro do Terceiro Reich, na França ocupada, por se tratar dum período extremamente sensível, ainda presente na memória colectiva. Porém, esse trabalho tornou possível reconstituir a história da Continental a partir de dentro, dos seus arquivos, entrando finalmente nesse território, interdito durante décadas, e levantar o véu que cobria a fascinante história dos estúdios, com as suas ambiguidades, paradoxalidades, idiossincrasias, mas sobretudo, resgatou do desconhecido e do esquecimento, um conjunto de admiráveis obras, surpreendentemente vanguardistas. 
Tem sido produzido algum trabalho de investigação e divulgação recentemente como a publicação da historiadora Christine Leteux “Continental Films: cinéma français sous l’Occupation”, os documentários “Laissez Passer” de Bertrand Tavernier e “O Mistério de Greven” de Claudia Collao, a par de inúmeros artigos na imprensa e exposições como a retrospectiva sobre a obra de Georges-Henri Clouzot na Cinemateca Francesa ou entrevistas e conferências dadas pelos investigadores que se debruçaram sobre cineastas que trabalharam no período da Ocupação ou sobre a Continental e seu conteúdo e contexto em geral. Esses trabalhos, têm vindo a devolver o lugar da Continental Films e das suas obras à História do Cinema e à Historiografia da Europa do Séc. XX. 
Convido-vos a ver este conjunto de filmes escolhidos para o ciclo que se segue, dedicado à Continental Films e a este período controverso da História da Europa."



 
O meu muito obrigado à Inês por esta fantástica introdução, e está lançado o mote para este "Quem Programa Sou Eu"  especial de Natal.

Se quiserem, pode ver já dois filmes em avanço, que não farão parte do ciclo por já se encontrarem no blog, mas que são, sem dúvida, duas das mais importantes obras da Continental.

 - Le Corbeau (1943), de Henri-Georges Clouzot
 - La Main de Diable (1943), de Maurice Tourneur

Até amanhã.

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