domingo, 15 de setembro de 2019

Quem Programa Sou Eu: Os Cineastas e a Televisão, por João Palhares

O João Palhares é um velho amigo do M2TM. Blogger desde 2007, autor do Cine Resort, co-fundador do Cineclube de Braga, Lucky Star, em conjunto com o José Oliveira, podem ler a entrevista aqui, e também já colaborador dos Thousand Movies no passado. Lembro-me de uma participação num 5x5 e no ciclo de aniveersário, por exemplo. E foi assim, com todo o gosto, que lhe enderecei este convite, com o tema por si escolhido a ser "Os Cineastas e a Televisão".
Para começar, vamos passar a palavra ao João, que fez todos os textos dos filmes que poderão ver aqui nos próximos dias. Os filmes, e não só, a partir de amanhã:



"Custa ler meia volta que é neste momento que se vive a época de ouro da televisão, e que haja muita surpresa e elogio a “atitudes progressistas” sempre que um realizador de cinema trabalha num episódio duma série ou num especial Netflix, como nos últimos anos fizeram Quentin Tarantino, James Gray, Martin Scorsese, Christian Petzold, M. Night Shyamalan, David Lynch ou David Fincher, quando nos anos 40, 50 e 60, foi um laboratório privilegiado para actores, escritores e realizadores, onde podiam trabalhar regularmente e quase ensaiar, como faz um músico, antes de um novo filme; bem como trabalhar, simplesmente, quando Hollywood não tinha nada para eles, e fazer belíssimos trabalhos. Foi durante estes anos, afinal, que se fizeram séries como “Screen Directors Playhouse”, “The Twilight Zone”, “Playhouse 90”, “Wagon Train”, “Alfred Hitchcock Presents”, “The Rifleman”, “Alcoa Premiere” ou “The Westerner”, por exemplo. E para a televisão, trabalharam Anthony Mann, Budd Boetticher, Don Siegel, Blake Edwards, Robert Aldrich, Nicholas Ray, Otto Preminger, Orson Welles, Alfred Hitchcock, Leo McCarey, Frank Borzage, Jacques Tourneur, John Ford, Allan Dwan, Ida Lupino, Frank Capra, Robert Siodmak, Ingmar Bergman, Edward Ludwig, Vittorio Cottafavi, Otar Iosseliani, John Cassavetes, Roberto Rossellini, Joseph H. Lewis, Samuel Fuller, Jean Renoir, Nagisa Ôshima, Helmut Käutner, Alexandre Astruc, Manuel Mur Oti, Jerry Lewis, Éric Rohmer, Abel Gance, Hang-Jürgen Syberberg, Ermanno Olmi, Rainer Werner Fassbinder, Luigi Comencini, Vittorio De Seta, Sergio Sollima, Jean-Luc Godard, Paul Newman, Chris Marker, Pedro Costa, entre muitos outros realizadores que começaram no cinema, alguns durante a altura do mudo. 
Podia ser só isto e já estávamos muitíssimo bem servidos, com centenas de horas para nos pormos a par de filmografias com interlúdios televisivos ou continuadas exclusivamente (ou quase) no pequeno ecrã (pense-se no resgate das carreiras de Jacques Tourneur, John Brahm, Ida Lupino, Mitchell Leisen, Vittorio Cottafavi ou Sergio Sollima) mas também foi na televisão que tiveram os seus primeiros trabalhos Sidney Lumet, Arthur Penn, Robert Altman, John Frankenheimer, Sam Peckinpah, Richard C. Sarafian, Robert Mulligan, Daniel Petrie, William Friedkin, Bob Rafelson, Larry Cohen, John Boorman, Stuart Rosenberg, Sydney Pollack, entre muitos outros, antes de tomarem o cinema de assalto nos anos 60 e 70. Nos primeiros anos de existência, como era terreno virgem e explorado por produtores independentes que ainda não controlavam as operações com punhos de ferro nem exigiam grandes formatações ou limites aos programas além dos da duração, podia-se experimentar quase de tudo em televisão. Nestas condições – a que se pode ainda acrescentar o facto de se ter podido fazer fosse o que fosse, durante uns tempos, sem pensar em horários para crianças e para adultos (não havia ainda controlo de idades) – não era de admirar que se reunisse um grupo muitíssimo variado de talentos, do teatro ao cinema, que ia aprendendo a conjugar-se e a completar-se para criar algo diferente. 
"Havia aquele sentido de energia, ali”, disse Robert Mulligan em entrevista ao Film Journal International, “acho que todos os tipos da televisão o tinham. A frase de Paul Newman sobre Sidney (Lumet) – de que realiza como se estivesse estacionado em segunda fila – acho que nos descreve a todos. Eu gosto de trabalhar rápido. Gosto de ensaios, montes deles. Quanto mais ensaios um actor tem, mais seguro se torna. Não acredito em actores que se poupam para a luz vermelha. Quero experimentar a interpretação para que se saiba se a cena funciona. Se um actor é como um mergulhador a saltar de uma prancha de mergulho, não quero que ele me diga que consegue fazer o salto mas não o vamos ensaiar. Eu digo que se consegue mergulhar melhor quando se sabe para onde se vai. O argumento com que confronto esse tipo de actores é: E as surpresas que podem acontecer quando se sabe para onde se vai? O que é que pode acontecer numa cena além do que é bem comum e óbvio? Eu acho que todos os realizadores de que estivemos a falar tiveram o mesmo sentido de preparação, a capacidade para se sentarem com um actor e o ouvirem a falar sobre o que quer fazer. Mas não falemos demais. Vamo-nos levantar e fazê-lo." 
Também Clint Eastwood, que começou a realizar no início dos anos 70 (o seu primeiro trabalho é uma curta documental chamada The Beguiled: The Storyteller, debruçada sobre o processo criativo de Don Siegel, o seu grande mentor e colaborador destes anos (1968-79), durante a rodagem de The Beguiled), passou pela televisão como actor, apesar de ter começado a carreira de cinema nos estúdios da Universal, quando era conhecida por Universal-International e lá trabalhavam realizadores como Raoul Walsh, Douglas Sirk, Budd Boetticher, Jack Arnold, George Sherman ou o próprio Siegel. Em “Rawhide”, série em que interpretava Rowdy, o segundo capataz de um grupo de vaqueiros, trabalhou com Jack Arnold (com quem já tinha trabalhado em Revenge of the Creature e Tarantula), e com Stuart Heisler, Robert D. Webb ou Gerd Oswald, realizadores de cinema já veteranos e experientes que se refugiavam na televisão ora por não arranjarem trabalho nos grandes ou pequenos estúdios ora simplesmente para manterem um certo ritmo de trabalho - para ensaiar o ofício. Lembrando palavras de Eastwood à Rolling Stone, “é como aquela história do grande trompetista clássico que, um dia, encontraram a tocar numa orquestra de basebol, em Wrigley Field. Alguém o reconheceu e perguntou, ‘Meu Deus, maestro, o que é que o maior trompetista clássico do mundo está a fazer numa banda de basebol?’. Ele respondeu, ‘Tem de se tocar todos os dias’. Em “Rawhide”, pude tocar todos os dias. Ensinou-me a reagir e acompanhar, a inventar e a levar as coisas para a frente.” 
O interesse dos grandes cineastas pelo meio novo da televisão foi muito bem resumido por Jean Renoir, em conversa com André Bazin e Roberto Rossellini no final dos anos 50. “Todas as artes”, diz ele, “as artes industriais (e, afinal de contas, o cinema é uma arte industrial) foram grandes no começo e depois degradaram-se com a perfeição. Há pouco falei dos tapetes de Arrás, mas é evidente que o mesmo vale para a cerâmica. Há uns anos também eu trabalhei com a cerâmica, tentei reencontrar a antiga simplicidade técnica, e reencontrei-a, mas artificialmente; e foi essa a razão pela qual me dediquei a uma profissão que era verdadeiramente primitiva: o cinema, no seu início. O meu primitivismo na cerâmica era um primitivismo artificial, porque eu recusava-me a utilizar os aperfeiçoamentos da técnica da cerâmica e limitava-me, voluntariamente, a fórmulas mais simples. E isto não era autêntico, era uma construção intelectual. O que acabo de dizer faz muito sentido no ramo da cerâmica. O meu pai, que trabalhou com cerâmica, explicou-me que se chegou a pintar um vaso com todas as cores inimagináveis, tal como se pinta sobre tela ou papel. Já não há cerâmicas, acabou-se tudo. A cerâmica existia quando tinha à disposição cinco, seis cores, quando possuía uma paleta limitada e técnicas complicadas. 
“O mesmo se aplica ao cinema; as pessoas que realizaram os primeiros filmes americanos ou suecos ou alemães – essas primeiras obras tão boas – não eram, com certeza, todos grandes artistas, aliás muitos deles eram artistas medíocres. E mesmo assim os filmes deles eram bons. Porquê? Porque a técnica era difícil: aqui está. Em França, depois do período majestoso, depois de Méliès, Max Linder, temos filmes que não valem o que quer que seja. Porquê? Porque éramos intelectuais, porque queríamos fazer filmes de arte, queríamos realizar obras de arte. Na verdade, a partir do momento em que nos sentimos intelectuais, deixando de ser artistas manuais, corremos um grande perigo. Se hoje, eu e o Roberto, nos dedicamos à televisão, é porque a televisão está num estádio técnico primitivo que talvez possa dar aos autores o espírito do cinema primordial, quando todas as realizações eram boas.” 
Outra das coisas que aguçou a curiosidade de realizadores consagrados ou encenadores jovens em relação à televisão, nos anos 50, foi a transmissão em directo, que implicava um jogo de cintura enorme se se quisesse fazer algo minimamente apresentável. Mas durante os directos, se se visse algo que valesse a pena, “um pedaço de emoção que não estava lá” (nas palavras de Arthur Penn), podiam-se mandar às urtigas todas as marcações e planeamentos de guiões de rodagem e arriscar manter um grande plano ou o exorcismo de um actor talentoso, em busca de revelações inéditas e impossíveis com regras e planeamentos. No início, a televisão pôde ser a ponte de acesso do grande público ao Teatro, através das encenações de Penn, Lumet, Cottafavi ou Bergman, além de ser também uma forma de literatura que o cinema não podia nem pode ser, emulando a leitura em capítulos ou tópicos, das enciclopédias aos grandes romances, dos livros técnicos aos livros de contos, das biografias aos livros de história, através de séries ou mini-séries de televisão como “Berlin Alexanderplatz” de Fassbinder, “Histoire(s) du cinéma” de Godard, “Cuore” de Comencini, “La lotta dell'uomo per la sua sopravvivenza” de Rossellini, “L'héritage de la chouette” de Marker, “Cristóbal Colón” de Cottafavi, ou a já citada“Alfred Hitchcock Presents”. Trabalhos feitos com a especificidade do meio em vista, com muito engenho e grande inteligência. 
Agradecendo ao grande Francisco Rocha o convite, a oportunidade e o desafio, termino dizendo que há várias televisões: a que documenta o mundo e tem toda uma herança por si só a que prestar contas, das grandes reportagens aos debates políticos mais icónicos, do homem à Lua e da poesia dos grandes desportistas; a televisão de todos os dias, que nos pode preencher alguns espaços de tempo sem termos de pensar se se compara a um plano do Mizoguchi, e que vai de João Baião a Jerry Seinfeld; a ficção formatada que idealmente podia fazer o mesmo que o cinema, mas se apressa demais e se perde nas malhas da estupidez e da banalidade; e a que não merece menção e hoje parece ocupar quase todas as grelhas e horários; por fim, nas margens ou no fundo de tudo isto, há também a que merece ser considerada como parte da história do cinema, a que ajudou a financiar certas empreitadas impensáveis, a que permitiu a grandes cineastas fazer experiências e ensaiar antes dos concertos em salas de espectáculos, a que fez, cimentou ou resgatou carreiras, a que vai sintetizada neste pequeno ciclo dos “Cineastas e a Televisão”."

Roberto Rossellini na rodagem de “L'età di Cosimo de Medici” (1973)

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