Dizem-nos os créditos finais que o “pequeno teatro” de Jean Renoir foi concebido em Veneza com Giulio Macchi, assistente de realização de Renoir e co-argumentista de Le carrosse d'or mais conhecido talvez por introduzir os documentários de divulgação científica na grelha de programação da RAI, nos anos 60. O filme de Renoir é constituído por quatro segmentos, “Le Dernier Réveillon”, “La cireuse électrique”, “Quand l'amour meurt” e “Le Roi d'Yvetot”, sendo este último o mais debatido e elogiado, “tamanha é a sua força e a sua grandeza que o espectador quando sai da sala em mais nada pensa,” como escreveu João Bénard da Costa na sua folha de sala sobre o filme. “Ou seja”, continuava ele, “é legítimo dizer, como Rohmer disse, que “Le Roi d'Yvetot” é o mais belo filme de Renoir, como se essa obra existisse per se e não como “parte” de Le Petit Théâtre,”. Mas não é por acaso que esse episódio é o último, porque “quando pensamos no filme como um todo (…) reparamos na rima perfeita. Essa história – ou anedota, como Renoir chama a todas – rima com as outras e as completa.”
Nos chamados filmes em sketches ou episódios, é-nos concedida a liberdade de escolher um como preferido, o que é perfeitamente legítimo quando são de vários realizadores, ou quando são pensados de forma independente e lamentavelmente aleatória (como no caso dos irmãos Coen em The Ballad of Buster Scruggs, cujo primeiro episódio quase faz com que se apeteça largar o filme e cujo quarto quase redime toda a empreitada), mas não no caso de um cineasta como Renoir e não no caso de um filme como Le petit théâtre, com uma progressão dramática por acaso estruturada em episódios. Assim, o “pequeno teatro” de Jean Renoir justifica-se quase simplesmente no título, que antevê um mergulho no seu inconsciente e nas suas histórias e afinidades electivas, tendo-o como anfitrião para por eles guiar as pessoas. No início, a homenagem a Hans Christian Andersen, seu colaborador involuntário, e que já tinha adaptado em La petite marchande d'allumettes, não por acaso também no início da carreira. Depois, uma ópera moderna sobre uma mulher, a sua enceradora eléctrica e os dois maridos. Uma comédia de enganos e costumes dos anos 30.
Avareza e doçura, tragédias e sorrisos, sardonismo, arrependimento, morte e cegueira e, na encruzilhada das ficções, levanta-se o pano para a aparição de Jeanne Moreau, que nos olha nos olhos até termos de desviar o olhar e nos pergunta “lorsque tout est fini / quand se meurt votre beau rêve / pourquoi pleurer les jours enfouis, / regretter les songes partis?” A câmara aproxima-se com cautela naquele que é um dos mais belos planos de Renoir e a voz hesitante e comovente de Moreau começa a conseguir vislumbrar um mundo em que é possível não se guardar rancor nem querer vingança ou reparar supostos atentados à honra, lamentar amores ou oportunidades perdidos, olhar para alguém com inveja ou violência. Até parece fácil. Sem revelar demasiado sobre a suprema revelação do último episódio, com um travelling sublime e transfigurador virado para os céus, entre outras maravilhas semelhantes, diga-se que tal revelação não era possível sem a fome e a melancolia dos vagabundos de Nino Formicola e Milly, a neurose cómica da Émillie de Marguerite Cassan, ou a interrogação meio desamparada meio esperançosa de Jeanne Moreau, com direito a um truque de magia antes de um milagre: Renoir atira uma bola pelo seu pequeno teatro fora até esta entrar no grande teatro da vida e despede-se de nós com um sorriso desenhado com a tinta, o pincel e a sabedoria dos seus setenta e cinco anos.
* texto de João Palhares
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