quinta-feira, 30 de maio de 2013

O Carro Fantasma (Körkarlen) 1921



Para todos os efeitos, até ao final da década de 1920 não havia tal coisa como um filme de terror. Claro, havia filmes que tinham elementos de horror, e já desde a versão de Frankenstein da Companhia Edison, em 1910, houve adaptações cinematográficas de romances góticos populares. Mesmo D.W. Griffith já se tinha envolvido por este território, no melodrama The Avenging Conscience (1914), que pedia emprestado alguns elementos do enredo de numerosos poemas de Edgar Allen Poe, e contava com uma das sequências de maior pesadelo no cinema mudo. Filmes como este, no entanto, eram melhor descritos como proto-filmes de terror, uma espécie de passo intermediário necessário antes do pleno florescimento do género no final da época do mudo, e início dos anos 1930. 
Não surpreendentemente, alguns dos filmes mais importantes do proto-horror vieram da Europa, que já tinha centenas de anos de história, mitos e folclores nos quais se inspirar, bem como nos recentes horrores da Primeira Guerra Mundial. Na Alemanha, vários cineastas basearam-se no Expressionismo para criar a sua própria linguagem psicologicamente sintonizada e altamente estilizada do proto-horror com filmes como Nosferatu, de FW Murnau (1922), uma adaptação não autorizada de Drácula de Bram Stoker, e Robert Weine em O Gabinete do Dr. Caligari (1919), filmes de um ciclo que já passou por aqui. No entanto, alguns dos filmes do proto-terror mais interessantes e provocadores surgiram na Escandinávia, uma região cujos auteurs do cinema mudo exibiam uma propensão natural para o visual assustador e elegante, tons melancólicos e uma obsessão com a morte, o sobrenatural, e a vida após a morte.
Proeminente entre estes filmes estava o magistral The Phantom Carriage (Körkarlen), de Victor Sjöström, um filme que é, provavelmente, melhor descrito como um melodrama espiritual. Baseado no livro de 1912 da escritora vencedora do Prémio Nobel, Selma Lagerlöf, que foi inspirada em vários contos do folclore europeu, "O Carro Fantasma" usa o sobrenatural como pano de fundo para uma parábola comovente sobre a tristeza, a culpa e a redenção. O personagem central é David Holm (interpretado por Sjöström, que muitas vezes era protagonista dos seus próprios filmes, e este foi o caso), um homem complexo que é, simultaneamente, simpático e desprezível. Embora possa ser charmoso e violento, também é egoísta e cruel, com os demónios internos alimentados pelo alcoolismo e uma amargura em relação à vida, que se torna uma profecia constantemente auto-realizável. Depois de ter sido abandonado pela esposa irritada e amendrontada (Hilda Borgström), passa a véspera de um Ano Novo a dormir embriagado num abrigo do Exército da Salvação, onde um jovem voluntário chamado Edit (Astrid Holm) mostra-se determinado a ajudá-lo.
Considerando o romance de Lagerlöf, o argumento de Sjöström não segue a ordem cronológica da história, mas sim, apenas em flashbacks que se revelam gradualmente as várias relações e ligações entre os personagens. Sjöström resiste a demonizar David, e em vez disso retrata-o como estando preso num ciclo vicioso, de ser vítima e vitimador.
Sjöström também constrói o passado do condutor da Morte (o Körkarlen do título original sueco) via Gustafsson (Tor Weijden), um amigo bêbado de David que lhe conta sobre o seu medo de morrer na véspera do Ano Novo, por causa da sua crença de que a última pessoa que morre no final do ano deve passar o ano seguinte na "afterlife" a conduzir a carruagem da morte agarrando as almas dos defuntos. Sjöström transmite esta ocupação sobrenatural e sombria com o uso elegante e impressionante de exposições múltiplas que tornam o motorista e o seu carro um pouco transparentes, para que assumam uma presença fantasmagórica que se move pelo mundo dos vivos, literalmente agarrando as almas dos recentemente falecidos. Sjöström baseia-se em imagens folclóricas para ter o rosto do motorista, em grande parte obscurecido por uma capa com capuz e tê-lo a transportar uma foice sem nenhuma finalidade funcional, excepto para associá-lo a centenas de anos de tradição do Grim Reaper. A técnica usada para criar a ilusão fantasmagórica é um dos mais antigos efeitos especiais do cinema, que remonta aos filmes do final do século 19 de Georges Méliès.
Ao contrário de tantos filmes de terror dos tempos correntes, Körkarlen tem um peso espiritual que adiciona uma verdadeira profundidade à sua imagem de terrível. Ajuda bastante que o filme seja tão bem fotografado pelo veterano Júlio Jaenzon, que emprega extraordinariamente bem o contraste e a escuridão em formas que evocam as comparações com o expressionismo, mas que sentimos serem totalmente naturais. Sjöström mantém-nos conectados com os personagens através de longos close-ups, evocando algumas imagens verdadeiramente inquietantes que são simultaneamente belas e perturbadoras. No entanto, apesar de toda esta bizarrice, o filme finalmente afirma-se não sobre o vazio da morte, mas sim sobre a importância da vida.

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