domingo, 4 de agosto de 2019

Sem Limites (Without Limits) 1998

Já na introdução a este ciclo sobre desporto tinha falado da homenagem feita pelo grande argumentista Robert Towne a um dos mais estranhos destinos e a uma personalidade que mais do que “teimosa” – como muitos no seu tempo apenas quiseram crer – se aproximava perigosamente – como sempre – da poesia. Without Limits tenta apanhar a cada momento os resquícios voláteis e a aura fúlgida e logo fantasmática de uma existência que de tão intensa parecia estar sempre a poder desaparecer para sempre num simples piscar de olhos. Para tactear essa sensibilidade leve como o vento mas absolutamente resoluta chamada Steve Prefontaine, Towne convocou um dos maiores directores de fotografia de que temos memória, Conrad L. Hall, e foi como pôde até ao fim do enigma do corredor de fundo que decidiu atacar sempre o primeiro lugar desde o tiro de partida ou então falhar grandiosamente; e, quando não o fez, no auge da precoce carreira, matou-se a ele mesmo ainda antes da tragédia que lhe iria ceifar a vida, antes de todas as medalhas ou antes de todas as polémicas vãs.
Without Limits é a aproximação vaga e possivelmente impossível desse hieróglifo puramente humano que respeitava e queria muito o seu treinador Bill Bowerman - Donald Sutherland, soberano – mas que não se desviava um milímetro da sua poética, do seu coração ou dos quartos complexos do cérebro que o ordenava. Talvez fosse uma resolução simples e afinal bruta de um Macho Alpha – apenas se sentia «um conas» se usasse a táctia habitual de muitos campeões: ficar na cauda do pelotão e atacar no final; ou algo intrincado ligado com a neurociência e com a formação ontológica; ou simplesmente, e aí a luz de Hall e o olhar de Towne parecem corroborar, estamos no campo do indomável, da poesia, precisamente: e a arte, como um pintor ou um romancista, de Prefontaine, é de cada vez esboçar e cumprir um plano arriscado, em rede tensa, um poema em pista, a sua catedral, o sua Capela Sistina, muito para além do entretenimento, do espírito olímpico ou do desportivismo. Steve Prefontaine parece a cada corrida rasurar na pista de tartã – mas na terra ou no cascalho seria igual – o seu ideal de mundo e então de beleza, e matar-se para o cumprir.
E aí muitas vezes o ganhar não era o fim absoluto – como os hustlers americanos, de Jordan ao Newman de The Hustler – mas algo a um tempo e nesse espaço longínquo e composto numa das partes do edifício, da sua estrutura que não compreendia a vitória como a cúpula perfeita. A atitude, o arrojo, o explanar da vontade e da sua compreensão do mundo criavam então essa beleza – não premeditada como todas as belezas – única e intransmissível da verdade. O que leva obviamente a questão para os campos da solidão, da dor, e, para os místicos, da Paixão. «A lot of people run a race to see who is fastest. I run to see who has the most guts, who can punish himself into exhausting pace, and then at the end, punish himself even more.», palavra de Pre. 
Imperscrutáveis são os fardos ou as redenções que alguns escolhem ou não escolhem. Ainda mais estranhas sãos as estupefacções de quem as não compreende. E assim sempre foi.
* Texto de José Oliveira. 

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