segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Pontypool (Pontypool) 2008

Desde 2011, que tenho um blogue – esse sítio em vias de extinção – no qual escrevo sobretudo sobre cinema de terror do sudeste asiático. Suponho que O Homem dos 2.000 filmes, na altura ainda numa contagem modesta (cof cof) de 1.000 filmes, albergasse a expectativa de que a minha selecção recaísse nesse âmbito, mas penso que para uma homenagem nada melhor do que sair da zona de conforto. Por outro lado, quando explorámos diversas possibilidades de filmes a apresentar nestes prolíficos 10 anos de blogue fiquei espantada com o facto de ter acertado com tanta facilidade num filme que o dono deste blogue não tinha visto. Ora, se o cinema é vastíssimo, não é de menosprezar quem a Ele se dedica há, pelo menos, dez anos. Era uma oportunidade que simplesmente não podia deixar passar.
 “Pontypool” (2008) é um filme canadiano independente, baseado numa obra de Tony Burgess “Pontypool Changes Everything”, sobre o advento de uma praga que transforma todos os seres humanos afectados em algo similar a zombies. Nunca fui grande fã de filmes de zombies. Reconheço o seu papel no imaginário popular e, em particular dos filmes de terror de que Romero continua ainda a ser o expoente máximo, mas nunca foi o subgénero que mais me atraísse. Em tantos e tantos anos de representações na literatura, cinemáticas, teatrais, etc, os zombies subsistem como seres vazios, aterradores pela brutalidade e incapacidade crítica na aproximação às suas vítimas, mas nada mais há a motivá-los além da capacidade de respiração humana. Diria até gosto por drenar uma vida mas eles são acéfalos por isso, ceifar uma vida nem sequer lhes poderá dar prazer – pelo menos não no sentido tradicional do termo. Por contraste, temos bestas e criaturas míticas, assassinos em série com mommy e daddy issues, com sérios problemas sexuais e outros tantos traumas que os formatam em toda a sua bestialidade; alienígenas com toda a vantagem de se poder imaginar qualquer coisa pois que não está provada a sua existência em termos científicos, entre muitos outros… E um zombie, continua ainda a ser… um zombie. Pouco mudou neste papel (extraindo talvez a caracterização), desde Romero, pois que as regras na sua abordagem são essencialmente as mesmas – a fixação da carne, ataque indiscriminado, infecção por sangue -, as únicas mudanças a que tenho assistido com poucas variações no universo cinemático, são o contexto psico-social, o início da infecção/incidente despoletador (esta palavra existe?) e o grupo de sobreviventes.
 Então, porquê “Pontypool”? Aborrecimento. A sério. Algumas das escolhas mais fascinantes e que não me canso de repetir e insistir para que os meus amigos cinéfilos assistam advieram do mais puro aborrecimento. O caminho foi simples: estava num daqueles dias em que tinha tempo e não me apetecia assistir ao blockbuster do costume, à rom-com sem piada e a lista de escolhas pessoais a visionar não me convencia particularmente. O motor de pesquisa foi meu amigo e encontrei algumas pérolas indie que papei logo de seguida, até chegar a este “Pontypool”. O autor do artigo vendia o filme como um exercício d’ “A Guerra dos Mundos” de Welles mas num contexto de apocalipse zombie com crash course em semiótica. Estava numa de experienciar algo diferente pelo que a ser verdade estava disposta a comprar daquilo que queriam vender. 

Sinopse: Grant Mazzy é um locutor de rádio mais interessado em entreter do que em assumir um papel informativo. É apologista de “quanto mais sangue melhor” – estaria perfeito no Correio da Manhã – e isso valeu-lhe o despedimento de uma grande estação e o recambiamento para a rádio de uma pequena localidade com pequenos meios e pouca capacidade para albergar um ego tão grande. Lá é acompanhado pela produtora Sydney Briar (Lisa Houle), uma profissional a toda a prova determinada a impedir que Mazzy desafie a linha editorial da estação e Laurel-Ann (Georgina Riley) que terminou recentemente uma comissão no Afeganistão. Aquele que seria mais um dia típico de uma cidadezinha aborrecida – o desaparecimento de Honey o gato da Sra. French é o tema quente da jornada – é virado do avesso após o repórter Ken Loney relatar acontecimentos bizarros e aterradores no consultório do Dr. Mendez que se espalham um pouco por toda a cidade. 

Já foram produzidos imensos, demasiados filmes em que um vírus zombie é transmitido pelo ar. Não existe nada tão essencial, tão premente, tão absolutamente necessário quanto o acto de respirar. Ao efetuar esse acto e estando o ar que se respira contaminado a infecção é certa. Agora imaginem um outro algo que seja tão natural e imprescindível ao ser humano quanto respirar, a linguagem por exemplo. Imaginem a perversidade, uma ideia tão insidiosa quanto a possibilidade de um vírus ser transportado numa língua e transmitido enquanto se comunica. Mais do que fazer, o Homem quer comunicar o que faz. É uma faculdade primordial e no entanto desvalorizada porque inata. O que Mazzy descobre enquanto descreve um circo de horrores é que o puro acto de comunicar – na língua inglesa – e a sua mensagem ser difundida e compreendida, pode estar a transformar outros seres humanos em zombies. O que eles fazem é… bem, não é muito diferente do zombie normal, sendo que se tornam irracionais a partir da acepção de palavras-chave que repetem depois vezes em conta e cujo significado perdem, tentando ir buscá-lo à boca da sua próxima vítima ou acabando por se devorar a si próprios. Em todo o caso o resultado é sangrento. Existem por isso, duas asserções muito interessantes: por um lado, o vírus não é indiscriminado pois apenas afecta quem compreende a mensagem e por outro, quem o transmite pode nem sequer estar infectado, tendo portanto, uma enorme responsabilidade sobre os seus pares. Surge então uma escolha a fazer como Mazzy diz a certa altura: “Should we be talking at all?” Enquanto um “A Quiet Place” exige o silêncio, no mundo radiofónico de “Pontypool” a escolha parece um pouco mais penosa. Informar é em simultâneo um perigo e um dever. Pelas conversas mantidas os habitantes naquela rádio tornada entretanto santuário, apercebem-se que nem todas as palavras estarão infectadas. Se não, eles próprios já se teriam transformado naquilo que mais temem. Embarcam numa encenação delirante que envolve a manutenção de conversas bizarras com alteração de palavras-chave de modo a não perder o sentido da conversa e em simultâneo não ativar o vírus assassino ou, quando têm oportunidade e conseguem, falam noutras línguas. Felizes dos canadianos francófonos. Outro pormenor divertido foi o facto de a língua afectada ser a inglesa – predominante no século XXI e a língua a que se poderão agarrar como bóia de salvação ser a francesa, que dominou o panorama mundial até meados do século XX com o poderio global dos EUA, bem como a desavença histórica entre os franceses e ingleses, da qual estes últimos podiam ser entendidos como “vencedores”. Num mundo ao contrário, a banal língua inglesa tornou-se tóxica, porque perigosa. Alvo de censura até. É o apocalipse da(quela) língua. Nos idos de 2018, com a brutalidade e trollagem que grassa nas redes sociais e personagens como um Presidente dos EUA que incita esse tipo de comportamentos isto é apenas irónico. 
 O campo de batalha de “Pontypool” é travado uns 80% numa estação de rádio e 20% nas mentes colectivas. O orçamento é certamente reduzido mas fica no ar – passe a piada – a ideia de que o enfoque na rádio, porque tão essencial para a transmissão dos acontecimentos e eventualmente do vírus foi deliberada. Em nenhum outro meio é tão essencial compreender o significado do que está a ser veiculado pois que não há imagem, apenas áudio. É impossível não prestar atenção a Mazzy, interpretado por um Stephen McHattie cuja voz foi feita para o meio, que embrenha a audiência nos seus delírios de ex-estrela, depois no fervor jornalístico e, por fim, no puro pânico que não quer ser transmitido mas se percebe à medida que o mundo que ele apenas consegue observar através dos sons cai em ruina. 
 É a Guerra dos Mundos se fossemos nós a ser filmados com a destruição do mundo enquanto o conhecemos a ser provocado por nós, na ponta das nossas línguas. E essa perspectiva é a mais assustadora de todas.
O filme foi escolhido pela Rita Santos, que também é a autora deste magnífico texto. 

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2 comentários:

  1. A propósito da natureza dos zombies, dos seus propósitos e acções (tais como descritos pela Rita no seu texto) - mas, atenção, nunca vi este filme - queria deixar-vos um pequeno texto meu sobre "The walking dead" e onde refiro, precisamente, a natureza dos zombies desta série e o (des)propósito das suas acções.

    THE WALKING DEAD – O CORAÇÃO DAS TREVAS

    E na oitava temporada há já um mau prenúncio... homens como eu e vós abraçando a ambição de divindades...

    25 de Outubro de 2016

    A nova temporada de “The walking dead”, a sétima, estreou-se ontem em tudo o que é pequeno ecrã - mais negra e desamparada do que nunca, sem pingo de esperança no devir.

    Muitos, senão mesmo a maioria, pensam em “The walking dead” como um banho de sangue gratuito, para gáudio dos novos espectadores do “pão e circo” romanos.Talvez… Mas, na sua matriz e no seu âmago, “The walking dead” é uma crónica sobre o negrume dos tempos que atravessamos – quer dizer, sobre os abismos abertos no coração de todos nós.

    Aqui fica um texto que escrevi aquando da estreia da terceira temporada.

    "THE WALKING DEAD - 3ª TEMPORADA

    Esta é uma das mais impressionantes séries alguma vez feitas sobre o dúbio e volúvel carácter da natureza humana. Num mundo que desapareceu sob os escombros de um não revelado Apocalipse, um grupo de humanos luta pela sobrevivência - mesmo que, para isso, tenham de perder a sua dignidade e reverter a um estado selvagem, pré-humano, quase sem moral nem ética, quase sem um propósito que não seja o de matar e atraiçoar para garantir a própria vida! A nossa humanidade, o nosso sorriso, a nossa empatia, a nossa capacidade de amar... resistiremos nós a tamanha provação?

    E, apesar de ter acção a rodos e cenas de meter medo ao susto, esta é uma série que nos obriga a pensar no presente - ou não fossem os zombies um pretexto para se falar da crise económico-financeira que nos corrói os alicerces civilizacionais. De facto, "The walking dead" é uma metáfora perfeita dos sombrios tempos que vivemos, da nossa completa ignorância e fragilidade face aos mecanismos e vontades que (des)governam o Mundo. Um cataclismo desconhecido (um vírus?) virou-nos as vidas do avesso e tudo o que resta é um medo difuso e vago que tudo cobriu irremediavelmente. Resta, acima de tudo, uma angústia que nos vai consumindo em lume brando, deixando vir ao de cimo os nossos mais básicos instintos: matar para sobreviver, num tempo e local que nega já a simples hipótese de empatia e compaixão com o Outro (é ver-se a abertura da primeira temporada, quando Rick, sem qualquer prurido, mata uma rapariguinha infectada).

    Essa criança, de andar arrastado e olhar acusador, pertence a uma imensa massa de espoliados da sua humana dignidade e que apenas busca a sobrevivência a todo o custo – vivem porque sim, sem objectivo nem devir. Depois, há uma minoria de “afortunados” em estado de choque e negação, mentalmente confusos e atordoados, a um passo de soltarem a besta adormecida no seu âmago. No caos, eles ainda buscam a utopia de um mundo com lei e ordem, de réstias de Estado e de normalidade institucional condizentes com as vidas que se esforçam por reconstruir, projectando os seus anseios e expectativas numa criança (Carl e, agora, o seu irmão ainda por nascer), cientes de que os valores morais e os princípios éticos que nos definem como espécie estão à beira da extinção. Estão? Ou já se foram em cada tiro que Carl dispara com visível gosto e precisão?

    Chegados aqui, continuamos sem conhecer a causa e os mentores deste trambolhão! Querem mais semelhança com o descalabro em que nos meteram?...

    Cinco estrelas para “The walking dead”? Obviamente!"

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