domingo, 1 de outubro de 2017

Os Sapatos Vermelhos (The Red Shoes) 1948

Sapatos Vermelhos é, provavelmente, o apogeu de toda a criação cinematográfica dos The Archers, com tudo o que de subjectivo implica essa designação. É também a continuação de um conjunto de filmes com um cariz vincadamente filosófico como foram Um Caso de Vida ou de Morte ou Quando os Sinos Dobram.
Quando escrevo sobre este filme, sinto que tenho que fazer uma declaração de interesses. Sapatos Vermelhos é um dos filmes que levaria para uma ilha deserta. E nem sequer é por ser um filme sobre dança de que gosto muito, mas nada entendo. Não é pela genialidade dos diálogos de Emeric Pressburger livremente inspirados no conto homónimo de Hans Christian Andersen. Também não é pela beleza estonteante das cores, desta vez, ao contrário do seu antecessor, apostando nos tons quentes. O uso da cor é de tal forma impressionante que Martin Scorsese considerou este Red Shoes como o mais belo filme a cores da história do cinema, juntamente com o Rio de Jean Renoir e a que eu acrescentaria o Escrito no Vento do Douglas Sirk. Nem é sequer pelo virtuoso trabalho da câmara, dos cenários, da direcção de actores (especialmente sublime nos vintes minutos em que acompanhamos a execução do bailado). O que é verdadeiramente essencial, o eidos que era utilizado pelos filósofos gregos, é que surge aqui em todo o seu esplendor uma questão fundamental: a Arte ou a Vida?. Comparado com alguns dos seus filmes anteriores, a estrutura de Red Shoes é quase linear. Dois jovens desconhecidos, ele músico e maestro, ela bailarina, entram no mesmo dia na companhia de dança mais prestigiada do mundo. Ele, um talento para a composição de partituras, impõe rapidamente a sua capacidade de escrever grandes músicas para a companhia; ela vai subindo a pulso, primeiro rejeitada, depois admitida num papel secundário, até se impor de forma esplendorosa em Sapatos Vermelhos, o bailado que dá nome ao filme. Acima deles está a figura do director da companhia (um desempenho fabuloso de Anton Walbrook) que coloca a questão essencial, um dogma de que não se afasta nem um milímetro: a grandeza dos artistas implica a renúncia. Um pouco como a actividade sacerdotal ou monástica, o artista só se elevará ao domínio do sublime se se afastar de tudo o que não for o seu acto de criação ou de representação. Este abraçar do ideal ascético deve ser compensado pelo puro prazer da entrega sem reservas à Arte, quase numa visão abstracta e incorpórea da criação e fruição do Belo como Platão sistematizou no seu diálogo Banquete. Esta visão é incompatível com o conceito de uma família, ou com o amor. Mas, somos todos humanos, demasiado humanos, nas palavras sábias de Nietzsche. E quando o amor une músico e dançarina, para ela, volta a implacável questão: A Arte ou a Vida? Tinta e cinco anos depois, no último segmento do Zweite Heimat de Edgar Reitz, outro génio da história do cinema (e de que mantenho a esperança de vir a ser apresentado neste blog), voltava ao tema, exactamente com o mesmo nome: A Arte ou a Vida. A resposta em ambos, é totalmente inconclusiva. Como conciliar dois amores literalmente incompatíveis? Como preencher o vazio que a escolha de um deles provoca ao abandonar o outro? O director da companhia põe-lhe a decisão de uma forma brutal: ou vais ser a melhor dançarina que alguma vez pisou os palcos, ou serás uma anónima dona de casa a cuidar dos teus filhos e a cozinhar para o teu marido. E ela não sabe o que escolher. Dilacerada pelo sentido de perda (incapaz de sublimar o amor terreno no amor abstracto da dança e vice-versa), ela só vê no horizonte uma terceira alternativa: radical e definitiva. 
É de filmes como este que se faz a história do cinema. Incompreendido na altura, por não ter um happy end, nem seguir o padrão mainstream dos filmes da época, Red Shoes só teria um novo fôlego muitos anos depois, fruto do empenho de Scorsese na sua restauração e digitalização. Nem sempre a justiça chega, mesmo que seja tarde. Neste caso, chegou. Penhoradamente agradecemos. 
* texto de Jorge Saraiva

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