Com Gone to Earth (quem em Portugal recebeu o nome de A Raposa), Powell e Pressburger entram declaradamente no terreno do melodrama como ainda nunca o tinham feito. É um filme brilhante, mas que acabou por ter um efeito polémico: David Selznick não gostou do final e procurou modificá-lo, no que esbarrou com a firme oposição dos The Archers. O caso acabou em tribunal com uma decisão salomónica: Selznick não podia alterar o filme na Grã-Bretanha, mas pôde fazê-lo para a versão americana, saída em 1952, com o título Wild Heart e com cerca de um terço do seu conteúdo alterado.
Gone to Earth adapta uma novela de Mary Webb de 1917. É um filme campestre passado em plena época vitoriana (final do século XIX), que foi marcada por um grande puritanismo. Tal como todos os grandes melodramas (veja-se o caso de Douglas Sirk), nunca é inocente. No centro está uma rapariga que vive numa espécie de mundo panteísta e que adora uma raposa e que parece viver em estreita comunhão com a natureza, particularmente com os animais. É uma personagem tão deliciosa quanto contraditória. Um dia promete ao seu pai, fabricante de caixões de profissão e notável harpista, que casará com o primeiro homem que a pedir. Será disputada ardorosamente por dois homens: o reverendo da região (igreja protestante) o primeiro a pedi-la e um proprietário e caçador da região. Envolvida na indecisão da escolha, a rapariga casa com o reverendo, mas acaba por ser seduzida pelo seu outro pretendente e troca-o. Esta é uma das grandes virtudes de Gone to Earth. Não é comum num filme de 1950 o adultério ser abordado de forma tão explícita e, ainda por cima, de forma tão amoral. Não há nenhuma condenação explícita pelo acto da rapariga por parte do argumento. A condenação vem da sociedade de uma pequena aldeia regida por severos costumes morais e da própria família do reverendo. O mais interessante é, na minha opinião, a densidade das personagens que tinha sido o ponto débil do filme anterior, A Black Small Room Nenhum dos envolvidos neste triângulo corresponde ao protótipo do bom cidadão, tão típico na maioria dos filmes da época: o proprietário é agressivo e possessivo e não se conforma com a escolha da rapariga; o reverendo parece encarnar todas as virtudes cristãs, mas não deixa de revelar alguma hipocrisia e agressividade quando se sente trocado: a rapariga, personagem central do filme, parece volúvel e caprichosa: o seu maior amor é a sua raposa ao mesmo tempo que oscila entre os seus dois amantes e trocando um pelo outro, para depois voltar ao primeiro. É curioso, a quantidade de filmes de Powell e Pressburger em que as mulheres são a personagem central: Canterbury Tales, I Know Where I Am Going, Black Narcissus e Red Shoes, para além deste. A humanização das personagens por uma percepção da inexistência do maniqueísmo remete-nos para a sua própria ambiguidade, afinal tão comum a todos nós. Esteticamente o filme é belíssimo, com as suas cores vivas e o excepcional trabalho de fotografia de Christopher Challis, num dos seus primeiros trabalhos de uma carreira que se viria a revelar repleta de grandes obras. Foi este ambiente deslumbrante que levou muitos críticos a considerar Gone to Earth como um dos mais belos filmes campestres de todos os tempos. Come-se com os olhos.
O filme termina de forma circular. As últimas imagens reproduzem, numa fase inicial, as primeiras. O desenlace anunciado que se assemelha ao de Red Shoes, era inevitável, embora não seja feliz. Para a posteridade foi a versão dos cineastas que prevaleceu. Embora não conheça a que foi modificada por ordem de David Selznick acredito, pelo que li, que o original é muito melhor. E é mais um dos grandes filmes dos The Archers.
* texto de Jorge Saraiva
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ResponderEliminarObrigado Chico.
Um abraço da Madeira.