segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Três Modernos Peregrinos (A Canterbury Tale) 1944

"Canterbury Tales tem a guerra como pano de fundo. Mas não é um filme de guerra. Há soldados britânicos em manobras militares, há crianças que brincam às guerras, há um sargento americano em solo britânico, há uma mulher que supostamente perdeu o namorado quando o seu avião foi abatido, há os destroços dos bombardeamentos da cidade de Canterbury. Mas não é um filme de guerra.
Se há uma obra enigmática na carreira de Powell e de Pressburger, é esta. Não porque seja particularmente hermético, mas porque não surge claramente com um tema definido. Temos três jovens (dois soldados e uma rapariga), mas não há nenhuma história de amor ou de ciúmes: temos um magistrado da pequena vila de Chillingbourne (que de facto não existe) que se torna na figura central do argumento, mas, apesar de ser muito elogiado pelos seus concidadãos, não é um filme político; temos um caso quase policial de alguém que deita cola na cabeça das raparigas, mas rapidamente se percebe quem é o responsável e o filme não chega a ser um thriller e, muito menos, um noir. Por isso se percebe que Canterbury Tales, apesar de ter feito uma boa carreira na Grã-Bretanha, esteve longe de alcançar o sucesso de outros filmes seus, quer anteriores, quer posteriores. Para o lançamento nos EUA, o filme teve que ser encurtado e remontado de forma a tornar-se mais acessível ao gosto comum do espectador americano. As quatro personagens principais parecem inteiramente perdidos no seu passado. A rapariga que regressa para trabalhar a uma zona onde foi feliz, mas, sobretudo, para se recordar do seu noivo entretanto morto em combate; o sargento inglês a pensar na sua memória enquanto organista e o seu desejo de tocar numa catedral, o que nunca tinha conseguido, limitando-se desconsoladamente a tocar em cinemas; o sargento americano, especialista em madeiras (ou não fosse ele do Oregon) que desespera em as cartas da sua namorada que deixou a um oceano e um continente de distância; e há, finalmente, o magistrado cuja memória o remete para a antiga estrada de Canterbury percorrida pelos peregrinos e que parece ter caído no esquecimento. Esta memória filogenética é o objectivo da vida do magistrado (mais uma vez um desempenho sublime de Eric Portman), onde se misturam fé e nostalgia, poesia e metafísica, silêncio e natureza e a vontade de viver no campo, mais próximo do canto dos pássaros e do desabrochar das flores, por oposição à vida anódina das grandes cidades. Esta vontade contagia os jovens e ameniza a hostilidade que à partida sentiam contra ele. Por isso, talvez o segredo mais íntimo do filme, resida na sua espiritualidade, não tanto no sentido religioso da palavra, mas de forma mais profunda, como se se tratasse do reencontro de cada um consigo próprio e com o sentido da vida. 
O final acaba por nos remeter para um inesperado júbilo, num filme que nunca sendo sombrio, não prevê que tudo se possa concluir de forma feliz. Mas não há aqui nenhum desajustamento. No fim resta sempre a esperança. Numa cidade devastada pelas bombas, numa guerra mortífera como nenhuma outra que a humanidade tenha conhecido, a esperança em dias melhores é aquilo que nos pode salvar da insanidade. A cena final, na mais simbólica catedral britânica, com os soldados a cantar e o jovem organista a acompanhá-los (concretizando finalmente o seu sonho) é a corporização dessa mesma esperança, É também uma cena empolgante, suficientemente bela para figura na antologia dos melhores finais da história do cinema. 
 Se estão a pensar que Canterbury Tales é uma obra prima, não se enganaram. É mesmo uma obra prima."
Texto de Jorge Saraiva.

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