quinta-feira, 6 de abril de 2017

Douglas Sirk - Imitações da Vida

"Eu tinha vagamente ouvido falar de um cineasta alemão que fugiu do regime nazi e se radicou nos EUA no final dos anos 30. Tinha lido qualquer coisa sobre o facto de nos anos 50 ter feito melodramas populares que foram sucessos de bilheteira, mas não demoveram os críticos mais empedernidos e exigentes. Não liguei muito a isso. De facto, o melodrama nunca foi um género que me entusiasmasse particularmente.
Um dia, depois de ver o Far From Heaven de Todd Haynes, li uma entrevista em que o cineasta americano se referia a Douglas Sirk e particularmente ao filme All That Heaven Allows (Tudo O Que o Céu Permite). A argumentação de Haynes era de tal modo apelativa e encomiástica relativamente ao génio de Sirk, que não resisti e fui tentar perceber os motivos de tanta admiração. Tive a sorte de começar pela obra prima do melodrama social, Imitação de Vida. e desde aí nunca mais parei.
 A reabilitação artística de Sirk é, em grande parte, devedora do trabalho pioneiro de Serge Daney que nos Cahiers du Cinema chamou à atenção para uma nova geração de cinéfilos para as singularidades da sua obra. Em primeiro lugar, a dimensão absolutamente deslumbrante da utilização da cor. Com o cinema de Sirk a utilização do colorido passou a ser uma parte integrante e decisiva da criação artística e não apenas um mero recurso técnico como acontecia na generalidade dos filmes até então. A partir da década de 70, uma nova revisão da sua obra, particularmente dos melodramas por si realizados nos anos 50, levou ao abandono duma visão simplista de filmes feitos exclusivamente para apelar aos sentimentos dos espectadores. Uma análise cuidada dos seus filmes foi revelando detalhes e perspectivas bastante menos óbvias do que uma visão apressada poderia conduzir. Na forma por vezes caricatural como se desenrolam as relações humanas no universo de Sirk, na dimensão frequentemente excessivamente teatral (Sirk começou a sua carreira na Alemanha, precisamente nas artes do palco), ocultava-se um apurado sentido metafórico. Não só Sirk, não fez cedências a um sentimentalismo rasteiro que é tão comum no melodrama, como ainda lhe acrescentou uma dimensão crítica da sociedade americana, numa época marcada por grande intransigência e dogmatismo ideológico (viva-se em plena guerra fria e qualquer posição crítica do funcionamento da sociedade poderia ser entendido como um gesto de anti-patriotismo, agravado ainda pelo facto de se tratar de um realizador alemão). O apogeu deste sentido crítico, talvez esteja em Imitação de Vida ao abordar de forma explícita o racismo, na altura tema tabu na sociedade americana. Mas, de forma geral, há sempre um olhar acerado sobre o funcionamento de uma sociedade onde as relações humanas são condicionadas, ou mesmo desvirtuadas, pelas diferenças sociais. Esta coragem revelada por Sirk, que em certos meios lhe justificou a designação um pouco exagerada de «realizador esquerdista», não é muito comum no cinema de Hollywood. Provavelmente, o termo de comparação mais óbvio é com o Frank Capra dos décadas de 30 e 40, embora sem o mesmo grau de romantismo e de confiança nas instituições americanas que o autor de It´s a Wonderful Life revelava. 
Hoje, Douglas Sirk continua a ser mais apreciado junto de algumas comunidades cinéfilas do que do público em geral. Tarantino citou-o em Pulp Fiction. Fassbinder amava o seu cinema como o de nenhum outro realizador e o Medo Come A Alma é uma influência directa reconhecida pelo próprio. Mas com referências directas de Godard, Almodovar, Lynch, ou Wong Kar-Wai (quando penso em Disponível Para Amar é impossível não pensar em Escrito No Vento), ou de filmes onde a cinefilia melodramática tem uma fonte de inspiração óbvia em Sirk, como Melo de Alain Resnais, tornaram-no numa referência incontornável de toda a história do cinema. E, no entanto, grande parte da sua obra, continua a ser desconhecida de muitos cinéfilos. 
 Este ciclo, não integral, mas bastante abrangente, procurará colmatar esta lacuna, prestando assim um acto de justiça à obra maravilhosa de Douglas Sirk. Espero que possam desfrutar plenamente"

É com este texto do professor Jorge Saraiva que damos inicio ao ciclo "Douglas Sirk - Imitações da Vida". 22 filmes, todos referentes ao período de Hollywood, sempre com textos do Jorge. Primeiro filme a partir de sexta-feira.


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