domingo, 26 de junho de 2016

Resnais - de Fio a Pavio

"O senso comum sempre ligou a figura de Alain Resnais a temas mais ou menos metafísicos, particularmente relacionados como o tempo e a memória. E embora, estejamos tentados a concordar com Peter Greenaway, quando afirmava que Resnais foi o único realizador da história do cinema a filmar o tempo enquanto entidade abstracta, reduzir a sua dimensão de cineasta a estes temas, é injusto relativamente à pluralidade de assuntos (e, já agora) de recursos estéticos abordados na sua carreira.

Tal se deve, em grande parte, à merecida projecção que as suas duas primeiras longas metragens, Hiroshima Mon Amour (1959) e O Ano Passado em Marienbad (1961) tiveram junto da opinião pública e da crítica cinéfila. Mas se Muriel, Ou o Tempo de Um Regresso (1963), o seu terceiro filme, ainda evoca os dilemas do confronto com a memória, a partir de A Guerra Acabou (1966), explicitamente o seu filme com uma conotação política mais vincada, não existe, ao contrário de cineastas como Ingmar Bergman ou Andrei Tarlovsky, um tema particular que seja aglutinador nos seus filmes. Resnais, modestamente, sempre afirmou que cada um só deve fazer aquilo que realmente sabe. Ele nunca se considerou escritor ou argumentista. Por isso, procurou sempre aqueles que considerava os textos mais significativos de outros autores (Marguerite Duras, Alain Robbe Grillet, Jorge Semprun, ou Alan Ayckbourn, entre outros). O seu cunho criativo era imprimido na forma singular como adaptava os textos e dirigia os filmes e não pela escrita dos textos. Acresce ainda à pluralidade dimensional da sua obra, o profundo interesse que Resnais sempre manifestou por outras formas artísticas, mas também científicas e políticas, exteriores ao cinema, mas que com ele intimamente se relacionam. Entre as primeiras, destacar-se-iam, a pintura, a banda desenhada, a música popular, a opereta e, sobretudo, o teatro; nas segundas, a Biologia. a Psicologia e a Pedagogia.

Desfeita a ideia tão comum quanto falsa de que Alain Resnais é um cineasta obcecado por um único conjunto de temas, impõe-se a pergunta: haverá, no entanto, algum traço que individualize o seu cinema? A resposta é afirmativa, mas os argumentos devem ser encontrados numa perspectiva puramente formal e numa forma de estar no próprio cinema. Pierre Arditti, um actor constante nos seus filme a partir de o Meu Tio da América (1980) terá resumido de forma feliz a sua forma de trabalhar com Alain Resnais: quando ele me chama para um novo filme, devo estar mentalmente preparado para tudo: para fazer playbacks, ou para cantar, para me desdobrar em meia dúzia de personagens diferentes, ou para qualquer outra ideia que lhe passe pela cabeça por mais extravagante que pareça. E o mais relevante é que essas ideias resultam sempre.

É aqui que pode e deve ser encontrado o traço identitário da carreira de Alain Resnais: a capacidade de surpreender, a recusa absoluta à submissão a um qualquer padrão temático ou formal. Como afirmou de forma inspirada Vasco Câmara a propósito da apresentação do seu penúltimo filme, Vocês Ainda Não Viram Nada (2012) no festival de Cannes: não sei qual é o mais velho cineasta aqui presente, mas com os seus quase 90 anos, Resnais é seguramente o mais novo, ou seja, aquele, que consegue permanentemente desafiar as convenções estabelecidas. É isso que o faz (e reportando-nos apenas aos seus quatro derradeiros filmes) ter uma capacidade de desafiar as suas próprias convenções, já de si nada convencionais e colocar constantes desafios aos espectadores que vêem os seus filmes: Corações (2007) resume rodo o universo de Eric Rohmer de paixões e desencontros de gente comum, numa Paris gelada; Ervas Daninhas, retoma o indeterminismo do díptico Fumar/Não Fumar, propondo dois finais alternativos e contraditórios; o já referido Vocês Ainda Não Viram Nada, um filme estranhamente subestimado e em que vários grupos de actores de gerações distintas, representam em planos diferentes uma versão do clássico Eurídice; finalmente, Amar, Beber e Cantar, um divertimento irónico sobre a morte, em que a personagem central nunca aparece no filme. Cada filme é um começo fragmentado a partir do nada. Não se encontra uma visão de conjunto na sua obra, como em muitos outros realizadores. 



Cada filme não parte, alvo raríssimos casos, de premissas deixadas pelos anteriores, antes é uma espécie de permanente desafio de superação, de cortar amarras com o passado. E, nesse particular, a obra de Alain Resnais não tem paralelo com a de qualquer outro autor de toda a história do cinema. Então, o que fica é esta aventura permanente, este gosto constante pela subversão, como se essa fosse a essência da criação artística. Como Resnais declarou numa entrevista: «Se eu pudesse definir o cinema em duas palavras, eu diria reunião e frescura. Frescura porque o privilégio do cinema é prestar-se à improvisação – mas para isso, é preciso ter tudo cuidadosamente preparado. Reunião, porque a invenção verdadeira está nas sequências. Os detalhes não contam, a combinação é tudo." Ou: "Olhe um quadro de Cézanne: nunca se mostrou melhor a Provence, a paisagem é apresentada com uma precisão, uma sensibilidade extremas. Ao mesmo tempo, é uma composição abstracta, um jogo de linhas e de formas. (...) O tema do quadro é o próprio quadro. Talvez seja necessário falar de um realismo formalista. 

É este realizador singular que o My Two Thousand Movies vai seguir de forma detalhada, num ciclo que se constitui como um dos momentos mais relevantes deste blog."

Os meus agradecimentos ao Jorge Saraiva por esta fantástica introdução. Todos os textos do ciclo serão da sua autoria, e, por isso, é através dos seus olhos que seguiremos este ciclo. Até amanhã.

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