terça-feira, 28 de junho de 2016

As Estátuas Também Morrem (Les Statues Meurent Aussi) 1953

As Estátuas Também Morrem é uma colaboração entre Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet. Trata-se de um documentário de meia hora que sem ter alcançado a projecção de Noite e Nevoeiro, realizado dois anos depois, se tornaria numa obra absolutamente premonitória, mas também incómoda. 
Premonitório porque o texto de Chris Marker narrado por Jean Négroni, aborda a cultura africana na perspectiva da colonização e da sua legitimidade, muito antes do problema se ter tornado candente em França, ou seja, antes da guerra na Argélia, quando se achava «natural e inquestionável» a missão civilizadora da colonização africana, sobretudo de toda a região subsariana. Incómodo, porque os desafios e questões colocadas, levaram a que fosse necessário esperar pela década seguinte para que tivesse sido levantada a censura à segunda parte do filme por parte do Centro Nacional de Cinema de França. O documentário começa por se centrar na escultura da África negra, pegando em peças de arte (sobretudo máscaras) de algumas das colónias francesas da África Ocidental. A primeira parte parece ser eminentemente uma reflexão de natureza estética e antropológica sobre a arte africana, em múltiplas dimensões: por um lado, reivindica a sua não menoridade, face a outras formas de arte, desfazendo uma visão eurocêntrica, profundamente paternalista, ao mesmo tempo que reafirma a sua ancestralidade e pontos de contacto com outras manifestações das artes plásticas de outras regiões do globo, nomeadamente a Grécia, a Suméria, a Índia ou o Japão; por outro lado, estabelece processos de construção da própria criação artística e das suas múltiplas funções, que acentuam a fundação de uma cosmovisão com implicações de natureza social e religiosa. A segunda parte do documentário, extrai um conjunto de ilações que à partida não pareceriam estar contempladas na parte inicial, mas cujo nexo causal facilmente se detecta após alguma reflexão. A forma como a arte africana se torna uma mercadoria, com a introdução do dinheiro como um elemento central do novo modo de vida dos povos africanos, algo que lhes era de todo estranho, coloca com particular premência a questão do colonialismo em todas as suas dimensões: política com a criação de regimes opressivos, social, com a formação de uma nova burguesia africana subserviente e imitadora dos padrões ocidentais, económica com a exploração dos recursos e a criação do trabalho intensivo quase escravo e de natureza cultural e ideológica com a destruição de uma forma de vida para a aceitação acrítica de um modelo de vida europeu, pretensamente aceite (eu diria imposto) como universal. O documentário preconiza assim uma visão alternativa do mundo, onde os valores do colonialismo são postos em causa de forma muito clara, embora nunca panfletária, particularmente a visão eurocêntrica de pseudo-superioridade da cultura ocidental. Se na primeira parte são valorizados os planos dos objectos artísticos, com uma análise sobretudo de natureza estética e com alguns períodos onde o silêncio só é interrompido pela música de Guy Bernard, na segunda parte, mais incisiva e politicamente orientada, recorrem-se a imagens de arquivo de danças africanas e da própria vida das pessoas. A incursão por outras imagens de arquivo de negros que se destacaram em diversas áreas de actividade (do desporto à música) remete-nos para uma análise cerrada do racismo, a partir de uma das suas formas mais odiadas, o paternalismo. 
Talvez o documentário deva mais a Chris Marker (o autor do texto) do que a Alain Resnais. Em todo o caso é material e formalmente uma obra exemplar. Na perspectiva de Resnais marca uma deliberada incursão nos temas políticos, que foi apanágio seu até meados dos anos 60 que seria posteriormente abandonado, pelo menos de forma explícita. 
* Texto do Jorge Saraiva

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