sexta-feira, 22 de abril de 2016

Elena (Elena) 2011

Há pouco menos de uma década que Andrei Zvyagintsev espantou toda a gente com Vozvrashchenie (O Regresso, 2003). O filme, sobre filhos que não estavam habituados a ser filhos e um pai que não estava habituado a ser pai, venceu o Leão de Ouro em Veneza, servindo para considerar instantaneamente o seu autor como uma espécie de filho pródigo do novo cinema russo. Com um absoluto controlo formal – a música original de Andrei Dergachyov entrava a pique a “moer-nos” o juízo e as entranhas – mas sobretudo pela construção de uma atmosfera toda ela de granito, que o mais russo dos escritores russos se poderia orgulhar, Zvyagintsev contava essa fatalidade de dois jovens a entrar na adolescência que tiveram de crescer às custas da morte do pai.
Em Elena (Elena, 2011), que entretanto também já fez os seus estragos e ganhou Un Certain Regard prémio do júri em Cannes, as crianças também ainda não cresceram. O mais novo porque é um bebé, limitando-se, no mais belo plano de filme (o picado sobre a cama, perto do final; logo verão, é fácil dar com ele) a mudar de espaço; e sobre o mais velho, já adolescente, Sasha, paira a ameaça de um futuro nada risonho entre a indigência nas ruas que o levará certamente à prisão e essa ameaça ainda maior que é a chamada ao exército. Mas o mais curioso é que se em O Regresso os filhos não crescem pela ausência do pai, aqui não o fazem pela sua presença. Isto é claro na forma como a câmara de Zvyagintsev se situa no atravancado pequeno apartamento, sem “linha de fuga”, onde estes vivem e na forma como apanha a presença opressora do pai de Sasha, desempregado, sempre lá, sentado no sofá, a abrir o frigorífico ou a comer batatas fritas até à eternidade.
Se temos vindo a falar do desemprego, da guerra, do futuro, este funciona como uma espécie de substrato omnipresente do filme de Zvyagintsev que começou por ser uma proposta de um produtor inglês para trabalhar sobre o tema do Apocalipse. O caminho ínvio que tomou posteriormente fez com que abandonasse a língua inglesa, e com ela o seu produtor, e fizesse o filme com dinheiros russos e aproveitando uma situação da vida do seu argumentista. E eis que chegamos finalmente à protagonista que dá nome ao filme, avó de Sasha, enfermeira reformada, viúva que casou novamente com Vladimir um homem bem mais rico. Cada um vive instalado num ritmo quotidiano metálico, do abrir e fechar dos cortinados, do dormir em quartos separados, do barulho de fundo das televisões, que só a idade permite compreender e que a montagem sonora ajuda a marcar. A gravitas contida de Elena (Nadezhda Markina), a fazer lembrar um pouco Imelda Staunton em Vera Drake (2004) ou a Alexandra de Sokurov (2007), transforma a relação com Vladimir numa espécie de duelo em surdina: ela a querer assegurar o futuro do neto através do dinheiro do marido e ele a defender a sua filha distante, mimada e irónica de nome. E Zvyagintsev prolonga esse duelo: entre os interiores silenciosos e marcados pelos sons dos ecrãs e os afazeres das personagens e os exteriores, onde a câmara, e a música de Philip Glass permitem entender essa vida de cada um deles a sós como um recarregar baterias para o próximo confronto amoroso mas também social. É que em último caso o que está frente a frente são duas concepções de vida: uma onde “the last should be the first”, como diz Elena, dos pobres que tudo podem fazer para sobreviver; e outra, de Vladimir e da filha Katerina, uma visão maquinal, calculista, que se perpetua indiferente nos seus maus genes e posses materiais.
Deste confronto que acaba por ter um desfecho “territorial” claro, sabemos quem leva a melhor. Assim como o sabem os corvos que abrem e fecham o filme. Este bird’s eye metafórico é o local a partir de onde o cineasta russo expõe a dimensão do conflito social da Rússia contemporânea. A partir deste ponto de vista qualquer triunfo soará a improdutivo, as classes jovens (os filhos e os netos) parecem incapazes de sair moralmente de onde estão e a vida parece ser um castigo suficientemente claro. É nesse atoleiro que o cinema reina sem pudor.
Texto de Carlos Natálio, daqui.

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