Há uns tempos encontrei uma publicação na Internet e decidi lançar um desafio: e se o MTTM acolhesse um ciclo dedicado a Dostoiévski? A ideia pareceu ganhar toda a simpatia possível e imaginária… e este texto é uma introdução possível, não ao ciclo, mas ao autor que motiva/inspira esta selecção de filmes feita pelo Francisco Rocha.
Sobre Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881), entre nós comumente conhecido por Dostoiévski, jamais me atreveria a escrever de um ponto de vista meramente biográfico e historiográfico – o exercício que me predisponho a fazer é completamente diferente: escrevo sob o ponto de vista de alguém que conhece Dostoiévski por intermédio das suas obras, uma relação que floresceu e tem vindo a ser construída desde há 15 anos.
Para além de escritor e de um retratista exemplar dos costumes da Rússia do século XIX, os seus romances e contos prestam-se a dar-nos um depoimento intemporal da interioridade humana. As temáticas que abordou contemplam todos os quadrantes da nossa existência, sem olhar a barreiras geográficas ou a delimitações temporais – o amor, a fragilidade, a vaidade, a compaixão, os medos, os ciúmes, a loucura, a fé, a destruição (de nós próprios e dos outros), retratados por personagens que as vivem intensamente; que questionam, que pensam, que sentem. Um pulsar de ideias e de sentimentos.
No seu primeiro romance, “Gente Pobre”, escrito em 1846, Dostoiévski, na altura com 25 anos, demonstra a sua empatia para com as pessoas de condições sociais desfavorecidas – e essa extrema sensibilidade para com a pobreza e as diferenças sociais será uma constante na sua obra –, arriscando ao nível da forma e do conteúdo: sem qualquer introdução ou apresentação, o autor mergulha-nos no universo da correspondência íntima entre duas personagens que se amam mas que jamais poderão contrair matrimónio. O que os impede tem um único rosto, um único nome: dinheiro. As (de)limitações materiais da existência humana e os direitos adquiridos por nascimento são violentamente expostos e condenados – e nos romances seguintes haverá uma evolução desses temas, compreendendo-se que conceitos como “posse”, “propriedade privada”, “bens materiais” geram desconfiança e são constantemente alvo de crítica.
Não almejando, no entanto, à perfeição, Dostoiévski teve os seus demónios interiores; a sua acuidade na descrição de estados interiores tidos como transtornos/desvios à norma (depressões, despersonalizações, loucuras, ciúmes doentios, paranoias) terá derivado tão-somente do facto do autor ser um observador-nato, já que não lhe foi diagnosticada uma doença de foro psiquiátrico. No entanto, a sua ludomania ficou sobejamente conhecida (um vício que durou cerca de 10 anos), possivelmente por causa da obra “O Jogador”. Estima-se que a última vez que o autor jogou tenha sido em 1871, altura em que escrevia “Os Demónios”.
Não podemos dizer que a obra de Dostoiévski seja auto-biográfica, mas há, a meu ver, um livro em particular que se aproxima mais do depoimento sentido e vivo dos sofrimentos de um homem, do que de um romance. Refiro-me a “Cadernos da Casa Morta”, uma das obras mais assombrosas e comoventes que alguma vez li. É certo que quando alguém cria (escritores, realizadores, pintores, músicos…) está a ser influenciado e inspirado por algo, e esse algo encontra-se frequentemente ao nível das vivências pessoais – no caso de Dostoiévski, a sua inspiração brotou das memórias de infância, do seu envolvimento com o grupo revolucionário Petrashevski e da prisão. O Círculo Petrashevski reunia um conjunto mais ou menos arbitrário de intelectuais, estudantes, oficiais do exército, que se juntavam para debater temas da actualidade e de pendor artístico; numa fase de tumultos sociais na Europa (1848), o czar Nicolau I, temendo que essas vozes revolucionárias eclodissem à sua porta, tomou medidas de prevenção. O Círculo foi extinto e os seus membros presos e condenados à morte por fuzilamento. A sentença aplicada a Dostoiévski viria a ser comutada para quatro anos nos trabalhos forçados e seis anos de exílio no exército – dez anos depois de ter sido preso (incluindo um período de encarceramento numa cela solitária) Dostoiévski é libertado em 1859. Quem conhecer as páginas de “Os Cadernos da Casa Morta” conhecerá, também, a minha dificuldade em compreender onde acaba o protagonista e narrador, Aleksandr Petróvitch Goriántchikov, e onde começa o autor.
Admirador de inúmeros escritores – que também exerceram uma influência no seu estilo e temáticas abordadas –, como Pushkin, George Sand, Shakespeare, Schiller, Balzac, Hoffmann, Goethe e Victor Hugo, Fiódor Dostoiévski criou e aprimorou uma escrita só sua e um tom quase confessional: o autor veste frequentemente a pele do narrador, criando um forte sentimento de proximidade para com o leitor; somos convidados a participar na acção, a ocupar um espaço ao lado das personagens ficcionadas. O “eu” do narrador, soando na nossa cabeça, torna-se o nosso “eu” – mas desengane-se quem pensar que os seus romances são excessivamente cerebrais ou abstractos: a intensidade dos pensamentos das personagens são expostos, não nos monólogos e nos pensamentos dirigidos apenas ao leitor, mas sim no confronto entre personagens e nos momentos de maior tensão dramática (nos diálogos): a progressão narrativa nasce no exterior, não no interior.
É possível que, para alguns, este texto pareça descontextualizado e/ou pouco apropriado/ajustado a um ciclo de cinema. Mas, para mim, são as abordagens diferentes (aquelas que provocam estranheza inicial) que realmente me surpreendem – ver o mundo sob uma nova perspetiva, ter dados novos para olhar um objecto, um assunto, um Ser. Dostoiévski fez isso comigo, marcou-me pela diferença, e a interpretação que faço do mundo que me rodeia (onde está incluída a minha paixão pelo cinema) foi – e é – influenciada por ele.
Vanessa Sousa Dias | Março de 2016
Os meus agradecimentos à Vanessa por esta fantástica introdução. Podem ler mais escrita dela sobre este e outros autores no seu blog, o V. Míchkin. A partir de amanhã começaremos o desfile de filmes baseados ou influenciados pela obra de Dostoiévski. Esperemos que gostem e bom fim de semana.
Que maravilha! muito obrigada aos dois!
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