quarta-feira, 4 de março de 2015
O Movimento das Coisas (O Movimento das Coisas) 1985
A filmes como O Movimento das Coisas costuma aplicar-se a designação documentário. É despropositado, nesta “folha”, retomar a discussão acerca de tal designação e do que separa ou não separa, enquanto objecto fílmico, o documentário da ficção. Mas também não adianta iludir a questão classificativa e acrescentar lugares comuns do género dos que afirmam que toda a ficção é documento e todo o documento ficção. Porque O Movimento das Coisas se situa na região indefinida onde essas questões podem e devem ser postas sem as reduzir a chavões.
Para exemplificar apenas com filmes portugueses recentes, pode ser grande a tentação de aproximar O Movimento das Coisas das obras de António Reis e Margarida Cordeiro, particularmente Trás-os-Montes e Ana. A meu ver, não há maior contra-senso. Não apenas por uma questão qualitativa (se muitos são os méritos de Manuela Serra, há uma enorme distância entre tais méritos e a grandeza atingida por António Reis e Margarida Cordeiro) mas sobretudo porque a raiz do filme que vamos ver, o seu imaginário e o seu fantástico, são de ordem completamente diferentes.
Se comecei por uma comparação ingrata a Manuela Serra, não foi para apoucar (mesmo relativamente) o seu filme, mas porque essa comparação tem sido exercida noutros textos sobre esta obra prejudicando a sua compreensão e o seu alcance. Atrás usei (e sublinhei) o adjectivo indefinida. Não foi por acaso. Ao rigor que preside aos regressos originais e originados de António Reis e Margarida Cordeiro, opõe-se em O Movimento das Coisas uma indefinição que lhe dá grande parte do seu interesse e o singulariza não só em relação à via única - e inimitável - desses cineastas, como a singulariza em relação a outras obras que podem, à primeira vista, ser aproximada desta, como são os casos dos belos filmes de António Campos ou de Philippe Constantini.
O Movimento das Coisas não é nem pretende ser uma gesta mítica, como não é nem pretende ser um documentário etnográfico ou antológico. Reparar-se-á que a aldeia onde o filme se passa nunca é situada. Lanheses é um nome que só aparece no genérico final, nos agradecimentos da autora. Qualquer português identificará a aldeia, situando-a no norte de Portugal, mas a imprecisão geográfica, ou a indefinição, para usar um termo mais apropriado, existe desde o inicio do filme. Não sabemos bem aonde estamos e nunca saberemos porque razão a realizadora nos levou até ali. Aparentemente, é uma aldeia igual a tantas outras, onde coexistem ritmos ancestrais com influências da emigração, aldeia onde predominam as mulheres, mas onde o trabalho destas não é exclusivo e as marcas de incipiente industria se começam a fazer sentir. Mas, desde a belíssima abertura, com o rio, as névoas, os juncos e a câmara, muito lentamente, a descobrir-nos a povoação, sentimos que há uma relação física entre o olhar da câmara e o que esta nos dá a ver, como se aquele espaço, aparentemente indefinido, fosse também o único espaço possível para a corporização do imaginário contemplativo de Manuela Serra.
Essa mesma indefinição entre os diversos materiais é uma constante que atravessa o que o filme nos vai dando a ver, com grande demora e certeira beleza. O filme não nos conta uma história (a família que o atravessa jamais é portadora de qualquer ficção ou qualquer verdade); o filme não ilustra o quotidiano de uma aldeia (as imagens do quotidiano mais ofuscam a narração do que a esclarecem); o filme não está ao serviço de qualquer causa (em vão procuraremos ver nele leituras politicas, sociais ou etnográficas); o filme não segue o ritmo exterior temporal (género, um dia na vida de uma aldeia, ou o ciclo de estações). Podia continuar as enumerações, respondendo sempre pela negativa. E, no entanto, tudo isso lá está (historia, quotidiano, causa, tempo, espaço) mas lá está no mesmo modo indefinido com que penetramos na comunidade. Numa língua literária, diríamos que a realizadora nunca utiliza artigos definidos, mas opta sempre pelos artigos indefinidos. Como estes “artigos” se articulam a uma matéria correcta (aparentemente despida de qualquer metafísica) a conjugação é estranhíssima e impõe, desde o inicio, um singular perturbação.
O exemplo flagrante do que estou a dizer é o uso da montagem. Aparentemente, a inserção de sequências alheias ao que parece centrar a atenção da realizadora (pense-se nomeadamente, na sequência do jantar da família ou na sequencia da igreja) não tem qualquer nexo, parecendo arbitrárias e retirando a duração necessária aos planos.
Mas, com maior atenção, vamos descobrir que o uso de montagem da cineasta é precisamente uma interrogação à montagem, como se Manuela Serra, a cada momento, pusesse em causa essa própria noção, substituindo-a pela noção de colagem e reunindo um todo os diferentes materiais que vai dando a ver.
Essa utilização específica é particularmente impressionante naquele que é, para mim, o mais belo momento do filme. Refiro-me a sequência da igreja. O plano começa por nos mostrar a imagem de Cristo no altar-mor e, depois, vai lentamente descobrindo o padre, o altar e a assistência. Contra-plano e, do ponto de vista do altar, vemos a assistência e a porta da igreja aberta contra um céu nocturno e azulíssimo. Tudo nos leva a supor que estamos numa missa nocturna, até que, lentamente e após novas inserções das imagens "leit-motif" do campo, do rio e das névoas, voltamos à igreja, com uma luz diferente, como se muito tempo se tivesse passado e os personagens permanecessem fixos naquele ritual, tal arrancados a qualquer tempo Preciso como a imagem de Cristo que a câmara nos dá em pormenor. Quando as pessoas saem da igreja é dia (crepúsculo? alvorada?) ficando apenas acesas as luzes da Igreja, como se a noite se projectasse de interior desta para o exterior, num sinal contrário ao da iluminação inicial.
Exemplos deste género multiplicam-se no filme, sempre por fragmentos, como se no houvesse outro movimento senão aquele do que o título da Obra nos fala. E esses fragmentos, e esses movimentos, são tanto visuais como sonoros. Ouvimos bocados de diálogos que, em si mesmos, parecem sempre esparsos e in-significantes. Mas o som com que ficamos é o da flauta da bela música de José Mário Branco, tão obsessivo e tão embalador como o plano visual do rio que passa junto a aldeia.
Tudo flui e tudo flui indefinidamente nesta obra que voga vagamente. Mas tudo flui em torno desses pontos de sustentação que são, paradoxalmente, os pontos de referência mais imateriais deste filme: a paisagem ritual e o som da flauta, que guiam do princípio ao fim no nosso olhar.
O Movimento das Coisas é, simultaneamente, um filme extremamente materialista e extremamente abstracto. Os dois termos não são inconciliáveis. Só que para o não serem é preciso uma determinável visão e é essa visão que dá coerência a este filme disperso e o transforma numa obra una, com surpreendente lógica e surpreendentes rimas.
Texto de João Bénard da Costa
In Folhas da Cinemateca
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