sábado, 29 de fevereiro de 2020

Proposta em Quatro Partes (Proposta in quattro parti) 1985

Proposta em Quatro Partes foi uma encomenda para a RAI que a exibiu no seu terceiro canal na noite de Natal de 1985, entre O Messias de Rossellini e a Orestíade Africana de Pasolini. É um filme de pouco mais de 40 minutos que passa por ser uma das suas obras menos conhecidas de Straub e Huillet, limitando-se a sua exibição em sala a sessões especiais de festivais ou de retrospectivas extensas da sua obra.
Trata-se, antes de mais, de um trabalho de montagem e colagem. Tal como o nome indica, juntam-se aqui quatro filmes ou excertos de filmes distintos: um excerto longo (quase integral) do filme de D. W. Griffith realizado em 1909, A Corner in Wheat; uma passagem com cerca de dez minutos do filme Moisés e Aarão de 1975 e inspirado na ópera incompleta de Schöenberg; Fortini-Cani (1976) aparece com um extracto de cerca de 15 minutos praticamente silencioso; finalmente são retomados cerca de oito minutos de Das Nuvens à Resistência de 1978. Ou seja, são retomadas três longas metragens consecutivas da sua filmografia da segunda metade da década de 70, antecedidas por uma pequena curta de Griffith dos primórdios da história do cinema. Como seria de esperar não existem introduções, comentários entrevistas ou qualquer tipo de explicação para esta associação. Isto significa que teremos que ser nós os espectadores a procurar encontrar ou recriar esse nexo causal que liga as diversas partes.
Essa ligação mais óbvia parece-me relacionada com o tema da Terra não na sua dimensão metafísica, mas enquanto fonte de sustento dos seres humanos. O excerto de Moisés e Aarão reporta-se ao momento em que a água do Nilo é transformada em sangue, esse mesmo sangue que constantemente aduba a terra através do trabalho. A parte respeitante a Fortini-Cani, a mais longa, é quase integralmente composta por paisagens naturais do Egipto num momento em que as palavras do livro Cães do Sinai do escritor italiano Franco Fortini são substituídas pelo silêncio das imagens. O extracto de Das Nuvens à Resistência é o da conversa entre pai e filho sobre a falta de chuva que é necessária para que as colheitas floresçam e a ligação entre os rituais de sacrifício e a exploração dos camponeses pelos patrões. Finalmente a curta metragem de Griffith tem um simbolismo muito peculiar. O filme, que no original tem treze minutos, parece-se fatalmente com um objecto de propaganda revolucionária. Começamos por ver a vida dura dos camponeses a semearem trigo, segue-se a especulação bolsista dos capitalistas que fazem subir artificialmente o preço do trigo para aumentarem os seus lucros o que se reflecte fatalmente no preço do pão aos consumidores, antes de terminar com um desses especuladores literalmente afogado até a morte no trigo que ilegal e especulativamente tinha armazenado. Griffith é um cineasta ambíguo e agridoce para muitos cinéfilos. Ninguém põe em causa a sua genialidade, mas quando vejo uma obra prima como Birth of a Nation não consigo ficar indiferente ao elogio final à Klu Klux Klan, a organização terrorista e racista americana. É certo que em Intolerância, Griffith quis emendar a mão, mas há erros que são muito difíceis de reparar. Straub e Huillet trazem-nos um Griffith anterior de um tempo em que o ciclo da produção de alimentos estava indissociavelmente ligado à desigualdade e à exploração. 
Proposta em Quatro Partes é um olhar de Straub e de Huillet sobre o cinema. O seu e o dos outros. Marca igualmente a incorporação da obra de cineastas relevantes na sua obra. Agora foi Griffith, mais tarde será Renoir. Claro que ninguém fica dispensado de ver os filmes na íntegra...
Sem legendas
* Texto de Jorge Saraiva

Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

América, Relações de Classes (Klassenverhältnisse) 1984

América foi o primeiro romance escrito por Kafka entre 1911 e 1914. Começou como um conto curto, evoluiu depois para a estrutura de novela, mas nunca chegou a ser concluído. Seria publicado três anos após a sua morte numa altura em que o interesse peça sua obra era consideravelmente maior do que aquele que tinha alcançado em vida. Apesar de ter algumas características que a conotam como uma obra de juventude, ou pelo menos, prematura, relativamente aos seus livros mais conhecidos, não pode ser considerado uma obra menor. Não se trata de um romance autobiográfico, embora haja referências que evocam para familiares seus que emigraram para a América.
Foi a este romance inacabado de Kafka (mais um fascínio pelas obras incompletas como tinha sucedido com Brecht e Schoenberg, entre outros) que Straub e Huillet foram buscar inspiração para Relações de Classe. Danièle Huillet frisava que o filme se chamava Relações de Classe e não Luta de Classes ao mesmo tempo que sublinha que «Kafka é o único grande poeta da civilização industrial, ou seja, de uma civilização na qual as pessoas dependem do trabalho para sobreviver». (folhas da Cinemateca). Com uma notável fotografia a preto e branco, filmado em 35 mm, o filme é sempre falado em alemão, respeitando o idioma original do texto. Tirando algumas imagens iniciais de Nova Iorque e da estátua da Liberdade e, mais à frente, do rio Missouri, foi totalmente rodado na Alemanha, como de costume com som local captado em simultâneo com as imagens. É considerada como uma das obras mais acessíveis dos dois realizadores, o que, paradoxalmente, acaba por o tornar num corpo quase estranho relativamente ao conjunto da sua filmografia. Em primeiro lugar porque aqui há um verdadeiro trabalho de adaptação de uma obra literária para a linguagem cinematográfica, movimento a que ambos tinham sido quase sempre avessos, com excepção dos filmes iniciais. Portanto não se trata de transcrever na íntegra, ou em grandes excertos, obras literárias ou musicais. Aqui há um verdadeiro acto de construir um argumento que, aliás vai realçar alguns aspectos particulares da obra em detrimento de outros. Por outro lado, porque se apresenta como um filme próximo de alguma «normalidade» pelos padrões comuns uma vez que existe aquilo a que poderíamos chamar em termos simplificados «uma história» para ser contada. Significa que estamos em presença de um filme convencional? Nem por sombras! De imediato pela própria escrita de Kafka. Adaptar as suas obras ao cinema é uma tarefa particularmente espinhosa, já que estamos na presença de uma escrita labiríntica, frequentemente absurda e profundamente conceptual. Que o diga Orson Welles que não se saiu particularmente bem quando transportou O Processo para filme, isto para já não falar do desastre de Soderbergh quando fez o mesmo com O Castelo, aliás a sua obre prima. Mas da parte de Straub e Huillet houve uma compreensão mais fina das características da escrita e por isso evitaram esse princípio redutor de normalização de que as adaptações referidas padeceram. Os momentos de absurdo não são suavizados, mas reforçados, não há uma pretensão de linearidade narrativa, os ângulos de filmagem desafiam os métodos tradicionais, a direcção de actores opta por uma rigidez e artificialidade que aqui são particularmente bem-vindas. Por isso, Straub e Huillet alcançam sucesso onde outros fracassaram. Por outro lado, América é um romance onde segundo Straub e Huillet «tudo se compra e se vende» Interpelado numa entrevista sobre o facto de terem valorizado os aspectos sociais, Straub não o nega, mas essa é a sua interpretação do livro, onde a despersonalização causada pelas relações de classe típicas do capitalismo, gera a marginalização, o abandono e um mundo sem justiça. O encontro entre Kafka e Marx se à primeira vista pode parecer improvável, acaba por não ser assim tão descabido… 
Relações de Classe foi distinguido com uma menção honrosa no Festival de Berlim. Para quem se quiser relacionar com a obra dos dois cineastas e não quiser fazer um percurso rigidamente cronológico, poderá começar por aqui ou por Crónica de Anna Magadalena Bach. Não porque sejam filmes menores que é uma coisa que não existe na sua filmografia, mas porque são aqueles que provavelmente causarão menor estranheza. As grandes aventuras podem vir depois… 
* texto de Jorge Saraiva

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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Cedo Demais / Tarde Demais (Trop tôt/Trop tard) 1981

Cedo Demais/Tarde Demais é uma espécie de filme ensaio. É composto por duas partes. Na primeira são lidos excertos de uma obra pouco conhecida de Engels, «A Questão Camponesa na França e na Alemanha» de 1894. A segunda parte é constituída pela leitura de algumas partes do livro do historiador e sociólogo marxista egípcio Mahmoud Hussein, «Luta de Classes no Egipto de 1946 a 1968». Ao contrário de alguns filmes anteriores dos realizadores que juntava textos distintos, esta reunião é totalmente assimétrica em termos de duração: a primeira parte dura apenas 27 dos 104 minutos de duração total do filme.
Se o cinema de Huillet e Straub se caracterizam por uma radicalidade sem concessões a qualquer estrutura convencional, Cedo Demais/Tarde Demais vai ainda mais longe nessas premissas. Podemos dizer que, mais do que em qualquer outra das suas obras, estamos em presença de dois filmes: o das imagens e o das palavras. Compete-nos a nós os espectadores, fazer essa ligação entre o que vemos e o que ouvimos. As imagens do segmento de Engels são rodadas em França, primeiro na praça da Bastilha e depois em algumas aldeias, com uma ou outra incursão pontual pelas cidades. As imagens do segmento Hussein são filmadas na Egipto, predominantemente em áreas rurais. Se no segmento inicial existe um ritmo relativamente constante entre o que câmara vai captando e o que a voz off (de Danièle Huillet) vai relatando, no segmento final temos longos períodos em que apenas vemos imagens sem qualquer acompanhamento sonoro, para além dos ruídos naturais ou das vozes de fundo dos transeuntes. Normalmente é utilizada uma câmara fixa, embora também existam alguns planos circulares e outros tirados a partir de um veículo em movimento. O objectivo é, por via de uma atitude eminentemente contemplativa, reforçar o poder das palavras e, simultaneamente, subverter as estruturas convencionais de realização de filmes. Não que isto seja novo no cinema de Straub e Huillet, mas não deixa de fascinar esta vontade de ir sempre um pouco mais longe. E não tenhamos dúvidas que Cedo Demais/Tarde Demais força todos os limites numa espécie de reinvenção do tempo de mostrar as imagens, de as deixar fluir fazendo-as valer por si próprias numa espécie de invulgar autonomia visual.
O segmento Engels começa com uma proclamação do filósofo revolucionário alemão que remonta à Revolução de 1789. Foi a acção decidida do povo que impediu que a revolução fracassasse, face às hesitações conciliatórias da burguesia, mas foi a mesma burguesia que impediu o seu aprofundamento. Na voz monocórdica de Danièle Huillet desfilam números sobre a pobreza nos campos de França. Houve uma revolução feita em nome do povo de que aproveitou apenas a burguesia que substituiu a velha na aristocracia na exploração dos camponeses sem que a situação deste se tenha alterado de forma significativa. A situação dos camponeses é o elo de ligação com o segmento de Hussein que começa igualmente com uma proclamação: é falsa a ideia amplamente propalada de que o povo egípcio aceitou de forma plácida a dominação estrangeira, aliada aos seus serviçais internos. O historiador vai evocando e analisando as diversas revoltas, sobretudo camponesas, primeiramente contra a dominação francesa que remonta ao bonapartismo, depois ao imperialismo inglês, finalmente e após a independência do país, contra as diversas formas de exploração e de corrupção praticadas pela classe dominante. Nesse sentido, é significativa a visão particularmente crítica do governo de Nasser. Recorrendo a imagens de arquivo das proclamações do antigo presidente, o texto reafirma a tese de que, na sua essência, pouco se alterou no Egipto com a ascensão de uma nova classe dominante atolada no nepotismo e na corrupção.
Parece certo que o papel central do campesinato na Revolução só se materializa com as teorias Mao Tsé-Tung e o seu papel determinante no sucesso do processo revolucionário chinês. Isto não significa que outros pensadores marxistas, a começar pelo próprio Karl Marx, não tenham reflectido abundantemente sobre o papel desta classe nas transformações sociais. Um papel frequentemente ambíguo e contraditório. Se os camponeses estão sujeitos a uma exploração por vezes até mais intensa do que a dos operários, a tarefa de os trazer para a Revolução é particularmente árdua, uma vez que eles são vulneráveis a ser conquistados para o campo das forças retrógradas, muitas vezes através de superstições infundadas que persistem ao longo de séculos. Talvez esta seja uma explicação possível para o enigmático título do filme. Na Revolução Francesa talvez fosse demasiado cedo aspirar a uma sociedade que derrubasse a exploração e a desigualdade; nas lutas camponesas do Egipto, talvez seja demasiado tarde, sobretudo se tivermos em conta que depois de Nasser, a situação dos trabalhadores egípcios ainda se degradou mais. 
É redundante afirmar que Cedo Demais/Tarde Demais é uma obra prima, uma vez que tal designação se aplica a grande parte da obra de Straub e Huillet. Mas pelo que acima foi exposto, este filme é literalmente imperdível.
Texto de Jorge Saraiva

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domingo, 23 de fevereiro de 2020

Ah, Ernesto (En Rachâchant) 1982

Ah Ernesto foi originariamente um conto de Margueritte Duras escrito em 1971. Parece que a escritora se interessou particularmente pela personagem por si criada, já que voltou a dar-lhe vida no filme Les Enfants de 1985 e no romance La Pluie D´été de 1980.
O conto é muito pequeno e a sua passagem ao cinema daria azo à mais curta metragem de toda a cinematografia conjunta de Straub e Huillet. São apenas sete minutos (com os créditos iniciais e finais incluídos), filmados a preto e branco e falados em francês. Tem apenas quatro actores, a criança, os seus pais e o director da escola. Ernesto, um aluno do ensino primário (para utilizar uma expressão antiga) chega a casa e diz aos pais que não quer ir mais à escola porque nesta só lhe ensinam coisas que ele não sabe. Alarmados, os pais decidem levar a criança para uma conversa como director da escola. Trata-se de uma criança que passa completamente despercebida (exceptuando o facto de usar óculos com lentes grossas) a ponto de nem sequer o director se lembrar dele. A troca de palavras entre aluno e director é particularmente saborosa e plena de humor, contrariando a ideia de que Straub e Huillet só filmavam textos densos sérios. Quando lhe é perguntado como é que vai aprender aquilo que não sabe se não for a escola a ensinar-lhe, Ernesto responde prontamente: é fácil: En rachâchant, abandonando de imediato a sala onde decorre a entrevista e deixando pais e director a fazerem prognósticos soturnos sobre o seu futuro. Aliás será En Rachâchant o título que os realizadores deram ao filme.
Parece-me um pouco despropositado fazer grandes considerações sobre um conto e um livro tão simples e com um tamanho tão pequeno. No entanto, após ter visto Ah! Ernesto, duas reflexões impuseram-se-me de imediato: por um lado, um elogio ao não conformismo e à irreverência infantil, Ernesto pode não ter razão e seguramente se arrependerá mais tarde da sua atitude, mas a tentativa de fugir à norma estabelecida e de questionar a aprendizagem escolar, como uma verdade indiscutível deve ser amplamente valorizada; por outro lado, o papel da escola como uma instituição de socialização forçada e de normalização de comportamentos e de atitudes, pode e deve ser questionada. Todos devem aprender o mesmo e da mesma maneira. Afinal, uma criança que quer marcar a diferença mesmo na sua ingenuidade, deve ser incentivada e não vista como um empecilho ou uma tragédia. Outras questões mais profundas sobre a qualidade e utilidade do que se aprende nas escolas sobre as relações entre o saber e o não-saber e sobre a relação entre o saber e a felicidade são igualmente lícitas a partir deste pequeno filme, que se revela um fecundo ponto de partida para inúmeras discussões. 
No seu livro Sociedade Sem Escolas, escrito, tal como o conto de Duras, em 1971, Ivan Illich afirmava que a verdadeira aprendizagem só será possível quando as escolas acabarem. Talvez seja esta a melhor forma de sintetizar a forma de estar de Ernesto!
Legendas em inglês.
Texto de Jorge Saraiva

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Da Nuvem à Resistência (Dalla nube alla resistenza) 1979

Cesare Pavese suicidou-se em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas quando tinha apenas 41 anos, embora muitos dos especialistas da sua obra afirmem que ao longo dela existiam traços evidentes de que este poderia ser o trágico final do escritor. Apesar da sua morte prematura, a sua obra é relativamente extensa, repartida principalmente por poesia, romance, cartas, contos diários e até uma obra inclassificável, Dialoghi con Leucò, de diálogos filosóficos entre humanos e personagens da mitologia grega, que, aliás, viria a inspirar uma parte deste filme. Foi resistente antifascista, membro do Partido Comunista Italiano após a segunda guerra mundial e hoje é consensualmente considerado como um dos maiores vultos da literatura italiana de todo o século XX.
Das Nuvens à Resistência é inspirado em dois livros de Pavese O já referido Dialoghi con Leucò e La Luna e i Falò um dos seus últimos romances e, porventura, um dos seus mais conhecidos. Apenas três anos separam as respectivas publicações, mas estamos em presença de obras completamente distintas. Respeitando essa distinção, Das Nuvens à Resistência está dividida em duas partes aparentemente estanques. Poderíamos dizer que estamos na presença de duas médias metragens, cada uma com cerca de 50 minutos. A primeira, por sua vez, também se divide em seis partes que correspondem a seis diálogos distintos devidamente separados. Esses diálogos remetem-nos para o «fabuloso tempo das origens» para utilizar a feliz expressão do filósofo Mircea Eliade. Abordam as relações entre os homens e os deuses a partir da mitologia grega. Straub e Huillet voltariam a este tema e a este livro em 2006 na derradeira longa metragem da dupla, Esses Encontros Com Eles, pouco tempo antes do falecimento de Danièle Huillet. Desse conjunto de diálogos, destacaria o terceiro e mais longo, entre o velho cego Tirésias e Édipo que foi filmado de uma forma absolutamente excepcional. Um carro de bois em movimento vagaroso conduzido por um homem do qual distinguimos apenas a silhueta e os dois dialogantes filmados por trás enquanto conversam. A maioria dos temas abordados nesses diálogos é relativamente árida: a relação entre os homens e deuses, a morte enquanto libertação de um mundo de sujeição e o significado da vida são abordados no texto de Pavese de forma reflexiva, expressando sobretudo as dúvidas e os temores dos humanos face à sua relação com o transcendente. No entanto, nos dois últimos diálogos, parece existir uma apropriação de temas mais terrenos: num deles, os Frígios veneram apenas a Terra e não os deuses do Olimpo e a Terra exige constantes sacrifícios humanos para que o sangue derramado permita boas colheitas; no último, um pastor conversa com o seu filho, sobre os rituais sacrificiais que implicam a existência de fogueiras para que os deuses tragam as chuvas, mas liga esses sacrifícios ao sistema secular de exploração a que os camponeses sem terra estão sujeitos por parte dos seus patrões, uma vez que apenas os pobres são sacrificados.
Este último diálogo vai fazer a ponte com a segunda parte do filme, também ele inteiramente constituída por diálogos, numa opção muito típica dos realizadores de dar primazia às palavras. Um homem regressa à sua aldeia natal no Piemonte, depois de ter vivido largos anos na América. Os diálogos entre ele e as diversas personagens com quem interage, é absolutamente exemplar acerca da forma de encontrar formas de narrar totalmente não convencionais, que numa primeira fase podem parecer desgarradas, mas que acabam por encaixar perfeitamente umas nas outras. O homem fugiu de Itália para não ser preso pelos fascistas e regressa já depois do final da segunda guerra mundial à sua aldeia, mas encontra-a substancialmente mudada. O período fascista, a ocupação nazi no final da guerra e a guerrilha antifascista deixaram cicatrizes profundas junto das pessoas que sobreviveram a tantas provações. O olhar de Pavese é profundamente desencantado, longe do que seria expectável num escritor comunista normalmente disposto a tecer loas aos «amanhãs que cantam». A maioria das pessoas (e a conversa no café é o melhor exemplo) continua mergulhada na ignorância e no preconceito. Afinal se há muitas coisas que mudaram, há uma essência que permanece: a exploração dos que não têm terra, a utilização das armas da superstição e da ignorância dos trabalhadores e dos pobres como arma das classes dominantes manterem e reforçarem o seu poder alicerçado na divisão da sociedade em classes. 
Das Nuvens à Resistência é um dos filmes preferidos de Straub de toda a sua extensa filmografia. Provavelmente é a sua obra prima e um dos melhores filmes da história do cinema. Esses méritos deste filme absolutamente extraordinário, devem ser integralmente repartidos com Cesare Pavese, um escritor absolutamente fabuloso, a um tempo árido e afectuoso, analítico e envolvente, convicto das suas ideias, mas profundamente heterodoxo e formalmente arrojado. A forma como os diálogos são filmados é absolutamente sublime, desde a fotografia à direcção de actores (como sempre não profissionais) passando pelo trabalho de câmara e pela forma como as diferentes estruturas narrativas se desenvolvem e interagem. Como é habitual neles, é um filme profundamente político, não no sentido mais comum do termo, mas na medida em que busca a essência do nosso viver colectivo e de uma sociedade marcada por irreconciliáveis interesses opostos. Nesse sentido, a junção de dois textos com temáticas aparentemente tão distintas, acaba por fazer todo o sentido. É um filme visceral, despojado de adornos, absolutamente essencial. Mesmo que não tivessem feito mais nenhum, só este Das Nuvens à Resistência bastaria para lhes reservar um lugar destacado em toda a história do cinema.
* Texto de Jorge Saraiva

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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Reviver Cannes 1980

Assim chegamos ao final deste ciclo, e a esta edição do festival de Cannes. Como ficou prometido, os vencedores ficaram para o fim. Não passamos todos os filmes, mas passamos uma boa parte.
Aqui estão os vencedores:


Palme d'Or:
All That Jazz by Bob Fosse
Kagemusha by Akira Kurosawa

Grand Prix:
Mon oncle d'Amérique by Alain Resnais
Best Screenplay: Ettore Scola, Agenore Incrocci and Furio Scarpelli for La terrazza 
Best Actress: Anouk Aimée for Salto nel Vouto
Best Actor: Michel Piccoli for Salto nel Vouto
Best Supporting Actress: Milena Dravić for Poseban Tretman & Carla Gravina for La terrazza
Best Supporting Actor: Jack Thompson for Breaker Morant 
Jury Prize: Constans by Krzysztof Zanussi

Golden Camera:
Adrien's Story by Jean-Pierre Denis


FIPRESCI Prizes
 Mon oncle d'Amérique by Alain Resnais (In competition)
Provincial Actors (Aktorzy prowincjonalni) by Agnieszka Holland (International Critics' Week)
Gaijin: Roads to Freedom (Gaijin - Caminhos da Liberdade) by Tizuka Yamasaki (Directors' Fortnight)

Ecumenical Jury:
 Prize of the Ecumenical Jury: Constans by Krzysztof Zanussi


Filmes em Competição para a Palma de Ouro:

All That Jazz by Bob Fosse
Being There by Hal Ashby
The Big Red One by Samuel Fuller
Breaker Morant by Bruce Beresford
Bye Bye Brasil by Carlos Diegues
The Constant Factor by Krzysztof Zanussi
Dedicatoria by Jaime Chávarri
Ek Din Pratidin by Mrinal
Sen Fantastica by Gilles Carle
As Herdeiras by Márta Mészáros
Jaguar by Lino Brocka
Kagemusha by Akira Kurosawa
The Long Riders by Walter Hill
Loulou by Maurice Pialat
The Missing Link by Picha
Mon oncle d'Amérique by Alain Resnais
Out of the Blue by Dennis Hopper
Put on Ice by Bernhard Sinkel
Sauve qui peut (la vie) by Jean-Luc Godard
Special Treatment by Goran Paskaljević
 La terrazza by Ettore Scola
A Week's Vacation by Bertrand Tavernier
Salto nel Vuoto, by Marco Bellocchio

Por hoje é tudo. Espero que tenham gostado deste ciclo.

All That Jazz - O Espectáculo Vai Começar (All That Jazz) 1980

""It´s showtime, folks!". Este musical fascinante, imaginativo e intimamente autobiográfico, que ainda divide o público, é um 8 1/2 americano, um testamento surpreendentemente cândido de Bob Fosse, dançarino dotado, coreógrafo brilhante, vencedor de múltiplos Tonys e realizador de "Cabaret", vencedor do Óscar. O drama de dança de Fosse, de uma franqueza espantosa - que ele concebeu, co-argumentou e realizou pouco depois de se ter submetido a uma cirurgia de coração aberto tem o seu alter ego em Roy Scheider, nomeado para o Óscar, como director coreográfico Joe Gideon, fumador compulsivo, femeeiro e devorador de comprimidos. Demasiado ocupado a ensaiar o seu novo espectáculo cheio de carga erótica, a intimidar financiadores e a engatar showgirls de pernas bonitas para levar a sério as perturbadoras dores no peito, Joe está a morrer (sedutor até ao fim no teatro da operação com o seu assistente anjo da morte, Jéssica Lange) enquanto contempla fracassos pessoais, triunfos artísticos e grandes momentos do espectáculo. "All That Jazz" tem uma verve selvagem na vida dos bastidores e é emocionante no modo como transmite a pressão obsessiva, que tudo consome, daqueles homens e mulheres apaixonadamente dedicados e impulsionados pelo seu trabalho.
Dança sensacional com a assinatura à Jazz do estilo Fosse e números de saltar os olhos (a estonteante abertura da versão muito soul de "On Broadway", de George Benson, outra apresentando o sempre presente animador du jour Bern Vereen) pontuam as reminiscências de um mestre teatral arrogante e satírico. Elas incluem flashes das suas raízes no burlesco rasca e uma visão sem remorsos suficientes das mulheres que amou, explorou, adorou, e deitou fora na sua vida (uma delas obviamente inspirada na terceira mulher de Fosse, Gween Vernon, bailarina e estrela na Broadway, outra interpretada pela sua protegida e mais tarde companheira, Anne Reinking).
Audaciosamente estruturado e também montado, "All That Jazz" conquistou quatro merecidos Óscares e está , ao lado de "Cabaret", como um dos dois melhores dramas musicais feitos nos últimos trinta anos. Como depois se viu, este epitáfio de celuloide, sem dúvida auto-indulgente, aconteceu quase uma década antes do desfecho. Fosse morreu repentinamente, embora de um modo inevitável, de um ataque de coração, em 1987, no momento em que a sua nova apresentação do sucesso da Broadway dos 60, "Sweet Charity" estava a estrear."
* texto de Angela Errigo. 

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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Uma Semana de Férias (Une Semaine de Vacances) 1980

Nathalie Baye é uma jovem professora que tira uma licença médica de uma semana e aproveita para fazer um balanço da sua vida e das suas  relações  com o ex-marido e o atual namorado, enquanto vê um outro homem entrar na sua vida.
Um filme sobre perguntas, dúvidas, medos, ansiedades, que os adultos podem sentir socialmente, e, em particular, através do papel de Miss Laurence Cuers (Nathalie Baye), uma jovem professora. Além deste sentimento de ansiedade social e depressiva que emerge, o filme critica a Educação Nacional Francesa, que trinta anos depois apresenta as mesmas falhas fundamentais do próprio processo educacional nacional e até o ambiente contemporâneo geral.
Bertrand Tavernier é um grande realizador do cinema francês dos últimos anos.Os seus filmes sempre tiveram um grande sentido de realidade, assim como têm criatividade e inteligência. Neste filme, o seu sexto, conseguiu a primeira nomeação para a Palma de Ouro, que viria a repetir mais 3 vezes.
Legendas em inglês.

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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Justiça de Guerra ('Breaker' Morant) 1980

A acção passa-se em 1901, durante a Segunda Guerra dos Bôeres, confronto entre o Reino Unido e os bôeres (descendentes de colonizadores holandeses), na África do Sul. Três oficiais do Exército australiano são julgados pelo assassinato de alguns prisioneiros bôeres e um missionário alemão. “É um novo tipo de guerra. Uma nova guerra para um novo século. É a primeira vez que o inimigo não usa uniforme. Eles são agricultores”, diz o tenente Breaker Morant (Edward Woodward), um dos réus, um homem forte que foi em busca de vingança, e acabou executado. A sua história mostra esse novo tipo de guerra, que ficaria ainda mais claro décadas depois, em confrontos como o do Vietname.
Muito bem filmado, ainda melhor interpretado, meticulosamente dirigido, e cuidadosamente escrito, "Breaker Morant" não é apenas um dos melhores filmes australianos já feitos, mas também é um dos melhores dramas da sua época. Apresentando uma história complexa sobre coragem, cobardia, política, violência e guerra, o filme dramatiza um acidente infame da vida real, que ocorreu no início do século XX, no lugar que mais tarde se chamou de África do Sul. No meio da tempestade que seria a segunda guerra dos bôeres, travada entre as forças do império britânico e os que resistiam ao domínio britânico, três oficiais de um regimento australiano que serviam o Reino Unido, são acusados de matar combatentes desarmados, incluindo um padre alemão, como represália pelo assassinato dos homens do seu regimento. 
Co-escrito e realizado por Bruce Beresford, usando a peça de Kenneth J. Ross, "Breaker Morant", como base, este filme, elegantemente construído, segue o julgamento dos australianos, e inclui flashbacks importantes no campo de batalha, e mostra-nos a imagem de um conflito onde as regras de envolvimento eram obscuras. 
O filme foi nomeado para a Palma de Ouro, e conseguiu também uma nomeação para o Óscar de Melhor Argumento adaptado. 

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Salto no Vazio (Salto nel Vuoto) 1980

O juiz Mauro Ponticelli foi criado pela sua irmã mais velha, Marta. Ela desenvolveu problemas mentais e passou a apresentar tendências suicidas, o que preocupa Mauro. Quando ela parece recuperar, Mauro apresenta-a a Giovanni Sciabola, um talentoso actor. Enquanto a relação entre os dois evolui, Mauro vê-se cada vez mais dominado pelos ciúmes.
Em 1980 foi um dos filmes mais bem recebidos em Cannes, e hoje em dia é, desses filmes, um dos menos conhecidos. Realizado por Marco Bellocchio, que participava pela primeira vez mo festival, contava com um trio de respeito: Michel Piccoli, Anouk Aimee, e Michele Plácido (pouco antes de se iniciar a série "O Polvo").  A evolução entre os irmãos protagonistas dá-se entre o sarcasmo e a ironia, a obsessão pelo suicídio que ronda a casa, o regresso aos salões sombrios onde cresceram juntos. Tudo isto lembra os primeiros filmes de Bellochio, em especial "Pugni in Tasca", e um poesia especial que aparece nos melhores momentos do filme.
O resultado final é inesperado e fascinante. Como na maior parte do seu trabalho o realizador usa os problemas aparentemente mesquinhos dos seus personagens como um espelho do que está a acontecer na sociedade em geral. 
Nota: nas definições de vídeo deste filme, mudem para o formato de 16/9.

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As Herdeiras (Örökség) 1980

Hungria, vésperas da Segunda Guerra Mundial. Szilvia é casada com Akos, um militar de boa aparência que deve a sua carreira à esposa, mas eles não podem ter filhos. Ela precisa de um herdeiro para herdar a riqueza da família. Consegue convencer uma jovem judia bonita e inteligente a engravidar do marido e dar o filho para adopção. No entanto, quando chega a hora do casamento as coisas descarrilham, não acontece o camento, e Akos inicia uma relação com Irene, a jovem judia. A criança nasce, e Szilvia promete vingança, e terá essa oportunidade com o começo da guerra.
Co-produção entre a Hungria e a França num filme sobre os efeitos da esterilidade e os ciúmes no casamento, no contexto da Segunda Guerra Mundial, com a constante perseguição aos judeus pelos nazis. A realizadora Márta Mészáros geralmente concentra-se nos seus filmes em temas como a gravidez, a meia idade, e outros tópicos, sem questionar o quadro geral. 
Márta Mészáros, uma realizadora já com uma longa carreira atrás de si, sobretudo com curtas, era pela primeira vez selecionada para a Palma de Ouro, apesar de quatro anos antes ter ganho o Fipresci Prize com o filme "Nove Meses", outra obra sobre o tema da gravidez. 
Sendo este filme uma coprodução, contava com uma actriz francesa como protagonista, Isabelle Huppert, agora uma das actrizes francesas mais reconhecidas, mas na altura ainda em início de carreira. Ela tinha outro filme a concorrer para a Palma de Ouro, "Salve-se Quem Puder", de Jean-Luc Godard. 
Legendas em inglês. Filme bastante raro. 

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sábado, 1 de fevereiro de 2020

O Candidato (Der Kandidat) 1980

Em 1980, Franz Josef Strauss competiu contra Helmut Schmidt pelo gabinete do governo da República Federal de Alemanha. Ele era ultra-consevador, e considerado ilegível por muitas pessoas, embora fosse muito popular na sua Baviera Natal. Este documentário mostra-o de uma forma muito respeitosa, citando-o e mostrando discursos antigos.
Este documentário poucas vezes visto, realizado por vários realizadores do chamado "Novo Cinema Alemão", concentra-se na campanha de um político ultra conservador. Um trabalho experimental e político, remanescente de Emile de António, utiliza clipes de noticiários, arquivos, e documentos da televisão, para revisar a carreira do controverso Frans Josef Strauss quando concorria a Chanceler da Alemanha Ocidental. Strauss fundou a União Socialista Cristã e teve uma longa história política como parlamentar, ministro especial, e em 1959 como Ministro da Defesa. A sua carreira foi atingida por uma série de escândalos quando a imprensa trouxe a público variados abusos de poder. Foi forçado a renunciar ao cargo de Ministro da Defesa no inicio da década de 60, quando outro escândalo eclodiu, por causa da forma ditadurial como ele reagiu a críticas às suas políticas militares. O editor da revista infratora foi preso, e o autor foi preso noutro país pelas ordens de Strauss. Este documentário traz uma história clara sobre as acções de Strauss e de como elas foram recebidas na imprensa.
Realizado por quatro realizadores em simultâneo, Stefan Aust, Alexander Kluge, Volker Schlöndorff, e Alexander von Eschwege, foi exibido no festival de Cannes na secção Un Certain Regard. Foi proibido de ser exibido em vários cinemas.
Legendas em inglês.

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