quinta-feira, 30 de abril de 2015

Os Emissários de Khalom (Os Emissários de Khalom) 1988



"Este é o filme de ficção científica português por excelência. Não só porque seja o único que eu saiba, mas pela qualidade do seu argumento que aguenta o teste do tempo, normalmente inclemente para este género. Os Emissários de Khâlom desenrola-se em duas épocas paralelas. No final do século XIX a comissão real das minas reúne-se para decidir a continuação da exploração de uma mina que ameaça ruir. Parece assunto de pouca monta, mas o bom senso científico choca com os interesses económicos que visam manter a minha aberta a todo o custo. No futuro (que, agruras da ficção e do tempo, é agora o nosso passado) um grupo de cientistas portugueses ao tentarem evitar a previsível aniquilação atómica à escala planetária envia ao passado um ser artificial, mas uma instabilidade desconhecida divide-o em dois, provocando um nível elevado de incerteza no fluxo temporal e o risco de desaparecimento de um dos cientistas, descendente directo do presidente da real comissão que um dos emissários tenta assassinar por vários meios.
O aparentemente banal momento do século XIX é na verdade um ponto focal na história. Da continuidade da mina depende a assinatura de um contrato que irá criar uma firma obscura que irá gerar os maiores conglomerados económicos e industriais do século XX. Os dois emissários, o original e a cópia que provoca interferências (criada num assomo passional por um dos investigadores do futuro) estão no passado para auxiliar ou travar a decisão fulcral, mas também no futuro onde se envolvem com os cientistas. E no passado profundo, numa civilização utópica milenar desaparecida há milénios. Só nos momentos finais do filme nos apercebemos qual é o emissário "mau"... e na verdade esse epíteto não se aplica, uma vez que são ambos faces de um mesmo conceito, uma dicotomia animus/anima com implicações esotéricas.
Sendo um filme de António de Macedo, podemos esperar um surpreendente e complexo argumento, cheio de linhas narrativas que colidem nos momentos cruciais do filme. O humor corrosivo do cineasta também se revela em pormenores hilariantes, como o conde inválido que todos os dias vai praticar com pouca pontaria tiro, incapaz de acreditar que o adversário para um duelo que devia ter acontecido anos antes tinha falecido de causas naturais. A fiel criadagem alimentava-lhe as pistolas com pólvora seca. Ou a visão particularmente corrosiva da ciência aplicada, com sugestões de produtos da pesquisa científica de utilidade duvidosa. Ou ainda, num pormenor pequeno que diz volumes sobre a história das mentalidades portuguesa, um sacristão que tenta em vão exorcizar aquilo que pensa ser um demónio enquanto bate em retirada, disfarçando o susto com esgares santificados.
O filme também se distingue pelo cuidado visual nos cenários. A caracterização do século XIX foi muito bem conseguida, mergulhando-nos na Belle Époque portuguesa. O futuro, inevitavelmente, surge ao olhar contemporâneo como um passado dos anos 80 do século XX, mas o aspecto futurista do centro de pesquisas surpreende apesar de pormenores que ficam inexoravelmente datados, como os computadores típicos dos anos 80. Curiosamente, temos nestes computadores de época (com as suas gloriosas diskettes de 5") um pormenor presciente. Uma modificação feita por um dos emissários permite aos computadores do centro de pesquisa comunicar com o computador em casa de um investigador, isolado numa tempestade de neve na Serra da Estrela. Uma inesperada antevisão avant la lettre da internet?
Junte-se a isto a habitual riqueza estética dos filmes deste cineasta, com a sua atenção à cor e enquadramentos, e temos um filme divertido e intrigante que marca um lugar na história do cinema português pela sua temática, originalidade e qualidade. E, fiel à tradição do conto de ficção científica, não deixa de ter um curioso plot twist no final, quando os últimos movimentos de câmara revelam a razão dos nomes de Verónica e Valdemar, os emissários da distante Khâlom/constructos digitais de software." Por Artur Coelho

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quarta-feira, 29 de abril de 2015

Recursos Humanos (Ressources Humaines) 1999



A semana de trabalho de 35 horas tem toda a França no seu encalço. Franck, um jovem graduado da escola de negócios, regressa à sua cidade natal, na província, para assumir um cargo na fábrica onde o seu pai tem vindo a trabalhar, há 30 anos. Primeiro comete o erro de perguntar aos trabalhadores da linha de montagem pela sua opinião. De seguida a gerência manipula os seus resultados para demitir os trabalhadores. Isto vai abrir uma enorme fenda, não apenas entre patrões e empregados, mas também entre pai e filho.
Resistente, e suficientemente subtil para ser tão cativante na segunda visualização como na primeira, "Recursos Humanos", de Laurent Cantet, é um filme que causaria inveja tanto a Godard como a Ken Loach. Combinava dois temas eternamente fascinantes de um modo muito interessante: a relação pai-filho, em lados diferentes da barricada, com o eterno conflicto entre trabalhador e patrão. Relações industriais são uma escolha brava para o tema da sua primeira longa-metragem, filmado em modo quase documental e com um baixo orçamento, que tornava o filme pouco atraente para as grandes audiências.
No seu modo mais simples, "Recursos Humanos" celebra e expõe a sangue-frio os problemas do capitalismo, mas tudo isso é apenas política. O dilema de Franck é muito mais interessante, e é o coração do filme. Com Franck a lutar contra pensamentos e emoções contraditórias, identificando-se com os trabalhadores, mas não completamente. Ele vê-se a si mesmo acima deles, e sente-se culpado por isso.
Grande parte do elenco deste filme era composto por actores amadores, mas isso não limita de modo este filme. Alguns anos depois Cantet ganharia uma Palma de Ouro em Cannes, com o filme "Entre les Murs", também ele formado com um elenco de amadores.
 
E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:



Quando perguntamos a alguém despreparado acerca da proveniência do lucro, frequentemente respondem que a origem está na compra de matérias primas ou de uma outra mercadoria e consequente venda por valor superior. A resposta está correcta, mas somente à superfície. Indo mais a fundo à raiz do fenómeno da criação de valor, a resposta está no trabalho humano. É o trabalho humano que cria riqueza. Daí que quando há uma greve, as coisas ficam claras, e o processo de geração de riqueza pára.

A própria expressão Recursos Humanos acusa o cariz da coisa. Os humanos são um recurso. Mas é com cinismo que ela surge nas empresas. O próprio realizador do filme, Laurent Cantet, explicou o título do filme como uma denúncia desse mesmo cinismo: “recursos humanos” não é mais que a gestão de homens e mulheres como mercadoria ou capital.

Recursos Humanos, não mãos do capital, é também um meio de amortecer o choque de classes nas empresas. É tudo feito na ilusão de que um trabalhador é um colaborador - e não um explorado - e que a empresa é amiga no melhor que lhe é possível. E é “amiga” até ao momento que já não precisa do “colaborador”. Isto é tudo muito mais claro nas grandes empresas, onde a folha de Excel se sobrepõe facilmente às relações humanas, enquanto que nas pequenas a empática e amizade se desenvolvem com frequência entre patrão e empregado, o que entra em contradição com a relação humana da lógica do mercado: “preciso de lhe baixar o ordenado mas gosto dele e tem ainda os filhos”. Nestas empresas não há secção dos RH nem calhamaços da disciplina RH nas estantes…

Há neste cinismo todo um desejo irrealizável de conciliação entre classes. E como não está à superfície das coisas esta conclusão de que classes antagónicas são antagónicas na sua essência, a ilusão é alimentada por largas camadas de indivíduos de ambas as classes sociais: os explorados não gostam de se imaginar como explorados, e os exploradores não gostam de se imaginar como exploradores, imaginam-se como empreendedores, como se não fossem sobretudo os trabalhadores a empreenderem o seu suor para os senhores do capital. Um pouco por tudo isto, é que Frank, protagonista no filme, é na sua ambição apenas um oportunista, também conhecido por… cabrão de merda. Não está para estar bem com Deus e com o Diabo. A sindicalista intransigente, que enerva qualquer “moderado”, torna-se uma figura… A vida dará razão a esta mulher?

Esta luta das 35 horas de trabalho semanais, que é transversal em todo o filme, e a toda a luta trabalhista. Ao forçar que a jornada de trabalho diário se reduza pelo mesmo salário, é o mesmo que pedir que o salário aumente por outra via. Aumentaria a qualidade de vida da maioria dos trabalhadores. Em Portugal, ultimamente, há uma guerra aberta entre os funcionários públicos e o governo, após este ter decretado o um aumento de 5 horas semanais à função pública – escusado dizer que é um governo lacaio dos grandes grupos económicos nacionais e transnacionais -, aumento que será a antecâmara para aumento da jornada de trabalho para todos os restantes trabalhadores.

O mais triste nisto tudo é que no século passado viveu-se uma diminuição considerável da jornada de trabalho por este mundo fora. Não basta a tecnologia aumentar a produtividade do trabalho, que resulta frequentemente em mais desemprego, mas é preciso mudar as relações de propriedade e dar mais poder à classe trabalhadora. Basta lembrar que a União Soviética foi o primeiro país do mundo a instaurar a jornada de trabalho de 8 horas (a partir de 1956 foram implementados os dias de trabalho de 7 horas e de 6 horas, bem como a semana de cinco dias). Mas a balança de poder entre os o capital e o trabalho voltou a estar desequilibrada. É urgente ter consciência de classe, noção concretizada de que a unidade faz a força, que não ocorra o que se sucede entre o pai e o filho deste nosso filme.

Só mais um ponto: há neste filme uma personagem que muda de lado na barricada da noite para o dia, assim de repente. Não conheço nenhum caso assim, a mudança de ideais numa pessoa ao ponto de passar da direita para a esquerda radical, é um processo lento e doloroso. Há coisas que segundo a minha experiência de vida só acontecem mesmo nos filmes.
por Bruno - Leitura Capital*



terça-feira, 28 de abril de 2015

Salmo Vermelho (Még kér a nép) 1972



Passado no século XIX, nas planícies húngaras, um grupo de trabalhadores rurais parte para uma greve, na qual eles irão enfrentar duras represálias, e a realidade da revolta, opressão, violência e moralidade.
"Még kér a nép", o título húngaro do filme, significa "E as Pessoas ainda Perguntam", e é muitas vezes descrito como um musical, o que faz todo o sentido, embora não seja isso o que o título sugere. Apesar de todos os takes longos, não é um filme passivo-agressivo, cheio de remendos estáticos intoleráveis, é antes caracterizado pelo constante movimento e uma actividade incansável. É um filme que não perturbou o Pacto de Varsóvia em vigor na altura, e ainda assim era mais do que um simples hino ao passado e ao presente do socialismo.
 Em "Meg ker a nep", o realizador Miklós Jancsó reduz os elementos cinematográficos naturais a um mínimo, o seu estilo cria uma sensação de importância do movimento, tanto em termos estéticos como ideológicos. "Parece-me que a vida é um movimento contínuo. Num processo, numa demonstração, há movimento a toda a hora, não acham? É físico e também é filosófico: a contradição é encontrada no movimento, o movimento de idéias, o movimento de massas. O homem está sempre rodeado, ameaçado pela opressão: os movimentos de câmera que eu crio sugerem isso", palavras do próprio realizador. Os takes longos e a montagem quase invisível permitem que os espectadores se concentrem em dispositivos não verbais, para entender a acção que se vai desenrolando.
O filme tem lugar inteiramente em exteriores, um factor comum na obra do realizador, e o espaço aberto é utilizado ao máximo, fazendo uma incrivelmente rica experiência de visualização, o máximo que os olhos podem ver. Concorreu ao festival de Cannes de 1972, valendo a Miklós Jancsó o prémio de melhor realizador. A Palma de Ouro foi perdida para dois outros grandes filmes políticos que já passaram por aqui: "A Classe Operária Vai ao Paraíso", de Elio Petri, e "O Caso Mattei", de Francesco Rossi. Era o ano do cinema político.


E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:



Desta vez não vos posso oferecer um texto relativo ao filme. Contudo, as poucas passagens de Salmo Vermelho que vi, lembrou-me uma citação do músico José Mário Branco. É que a música, como qualquer arte, pode ser usada para o progresso ou para o seu inverso. Nestes filmes do ciclo tem-se salientado que não existe neutralidade, que toda a criação humana é fruto de uma relação entre humanos, e de uma relação de classes antagónicas. A arte é também fruto dessa interacção e age na mesma natureza de interacções. A Música é usada neste filme como um meio para algo superior, das "grandes coisas da alma humana". 
Aqui vos deixo a citação a José Mário Branco para mote à reflexão complemento ao filme:
Não existe neutralidade na canção. Tenho pensado muito nisso por causa dessa treta de nos chamarem cantores de intervenção. Chamarem-nos cantores de intervenção é uma forma de desresponsabilizar os outros que não o são. Parece que, normal é uma pessoa não intervir, não se meter “nessas coisas”. Quando qualquer ocupação do espaço social – em cima dum palco, num disco, num tempo de antena (…) – é relevante do ponto de vista da nossa relação com a comunidade. Portando, não há neutralidade nisso. Se eu ficar a cantar baboseiras, parvoíces, ou coisas completamente anódinas que contribuam para estupidificar as pessoas, etc, eu estou a intervir, sou activo na mesma, estou a dizer: “É pá, ficas quietinho, não faças nada. Tu és um escravo. Não levantes a garimpa, continua isso, nasces, morres, e continua o processo. Não faças nada.” Outros, seja a falar de amor, seja a falar das relações sociais, seja a falar de poesia – das grandes coisas da alma humana -, exprimem-se, entregam-se, questionam-se. Isso, quando passam para si e para os outros… [tem um efeito]. 

(Em entrevista ao programa Bairro Alto, emitido em 2010 na RTP2. Pode assistir ao programa aqui).

por Bruno - Leitura Capital*

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segunda-feira, 27 de abril de 2015

Matewan (Matewan) 1987


Mingo County, West Virginia, 1920. Um grupo de mineiros tenta formar um sindicato, sendo este contra as empresas operadoras da extração de carvão e os homens armados da agência Baldwin-Felts. Negros e mineiros italianos são trazidos pela companhia para substituir os mineiros grevistas, e são apanhados no meio das duas forças. O organizador do sindicato, Joe Kenehan (Chris Cooper), está determinado a juntar as três forças juntas: os locais, os mineiros italianos, e os negros.
Talvez um dos melhores filmes dos anos 80, "Matewan" de John Sayles leva-nos de volta até à década de vinte, tempos perigosos para a vida de mineiro em West Virginia. Recriação meticulosa de tempo e lugar, reforçada por grandes interpretações, particularmente por Chris Cooper (em estreia cinematográfica, passando a ser, a partir daqui, um habitual colaborador do realizador), e o majestoso James Earl Jones, interpretando um mineiro chamado "Few Clothes" Johnson. O elenco contém ainda outros habituais do realizador, como Mary McDonnell, Will Oldham, David Strathairn, Kevin Tighe, Bob Gunton, entre outros. O filme conta ainda com fotografia do lendário Haskell Wexler, providenciando visuais sumptuosos e um climax catártico, envolvendo o sangrento e histórico tiroteio que colocou Matewan no mapa, e que pode ser um dos momentos mais altos da carreira de Sayles.
O filme foi extremamente bem recebido na altura da sua estreia, mas houve uma série de historiadores que se queixaram que a batalha de Matewan foi pintada de um tom muito negro para as suas sensibilidades. Estamos a lidar com a ganância corporativa de uma empresa da extração de carvão, numa altura em que os trabalhadores eram muito mais explorados do que são hoje em dia, por isso, dificilmente este quadro não seria fiel aos acontecimentos reais.
Conseguiu uma nomeação para os Óscares, pela fotografia de Haskell Wexler. Era a sua quarta nomeação, tendo já ganho a estatueta por duas vezes.

E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:


Lembram-se de Tom Joad do primeiro filme do ciclo, de Vinhas da Ira? O espectro dele está de volta na pele de Joe Kenehan, um sindicalista da United Mine Workers. A grande diferença de Joe (Matewan) comparativamente a Tom (Vinhas da Ira) é o grau de maturidade relativamente a como se luta consequentemente. Este filme tem como protagonista alguém com experiencia suficiente para organizar os mineiros até à vitoria das suas reivindicações. Há um outro paralelismo possível com o segundo filme do ciclo, Il Conpagni, em que o professor Sinigaglia ajudou a organizar os trabalhadores de uma fábrica têxtil de Turim. Mas há sempre diferenças na táctica adequada a empregar, porque cada caso é um caso, e cada situação tem as duas características próprias. Uma mina é diferente de uma fábrica têxtil, Turim é diferente de Matewan, logo Joe e Sinigaglia tinham necessariamente de agir criativamente conforme as diferenças e, mais importante, o conjunto dos trabalhadores saber interpretar as manobras sujas do inimigo e responder objectivamente em unidade.

Um elemento que me recordo bem do meu visionamento deste filme é o comportamento da Polícia. Algo que levanta alguma surpresa pelo posicionamento de classe que acaba por ter. Mas, lembra-nos que nem sempre a polícia se deixa destacar em favor da classe dominante, isto é, da burguesia. A ligação dos polícias aos homens da terra deu-lhes um sentido de justiça que vai além das ordens superiores. Não que não tenham hesitado, mas as armas não se viraram para os mineiros, ao contrário do que é mais frequente. Que mais sugere esta situação? Que as instituições, tal como o Estado, não é neutro, nem é sempre instrumentalizado maioritariamente em prol da classe dominante; as coisas mudam, e o Estado burguês de hoje pode virar o Estado proletário de amanhã… mas isso é um assunto que não cabe aqui falar. Até a religião…

Relativamente a outros tópicos do filme que poderia evidenciar, já quase todos foram de alguma forma tema de filmes anteriores do ciclo. Mas há um que gostaria de referir ao de leve: o preconceito anticomunista. Sei de experiência própria que a maioria das pessoas quando falam do comunismo, não falam do comunismo, mas da caricatura que têm criada nas suas cabeças. O papão criado à volta dos “vermelhos” é o que é suposto que aconteça, a classe dominante, com necessidades antagónicas à classe trabalhista, como em qualquer guerra, ela diaboliza o seu inimigo. Há várias cenas no filme que sem se ser tão directo se percebe a confusão, medo e preconceito relativamente ao sindicalista, mesmo entre os mineiros. Isso demonstra que o primeiro embate político é sempre ideológico, e também por isso que é tão importante um ciclo como este. Passo a passo até à consciência de classe e à consciência do papel da nossa classe na História.

por Bruno - Leitura Capital*

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domingo, 26 de abril de 2015

A Greve (Stachka) 1925


 Numa região fabril russa, durante o regime czarista, há grande inquietação entre os planeadores de uma greve, com a gestão a trazer espiões e agentes externos ao movimento. Quando um trabalhador se enforca depois de ser erradamente acusado de roubar, os outros trabalhadores entram em greve. No início, há excitação nas suas casas, e nos lugares públicos, enquanto eles desenvolvem as suas demandas comunitariamente. Depois, à medida que a greve se desenvolve e as suas demandas são rejeitadas, a fome aumenta, provocando uma aflição doméstica e cívica. Provocadores recrutados pelos patrões, e em conluio com os policias e os bombeiros, trazem problemas para os trabalhadores. Os espiões fazem o seu trabalho sujo, e os militares chegam para liquidar os grevistas.
Nos anos vinte, Eisenstein tornou-se famoso pelo uso da montagem, cortes rápidos, e contrapontos abstractos, estranhos à acção brutal, garantiram-lhe um respeito duradouro. A sequência do matadouro intercalada com o abate de trabalhadores inocentes em greve, ainda é ousada e desagradável nos dias que correm. Com o uso de motivações magníficas, interlúdios poéticos, ângulos expressionistas incríveis, composições construtivas, e sequências de multi-ângulos, "A Greve" é um dos mais dinâmicos filmes filmados e montados na época do cinema mudo.
Sergei M. Eisenstein tinha apenas 26 anos quando dirigiu este seu primeiro filme, que é considerado uma das maiores estreias na história do cinema. Eisenstein tinha outra coisa em mente. Ele queria fazer um filme revolucionário sério para o povo. Felizmente, é uma obra tão energética e feroz, que nenhuma quantidade de propaganda pode oprimir o seu poder. Este também seria uma espécie de aquecimento para o seu filme seguinte, "O Couraçado Potemkine", onde Eisenstein desenvolveu todas as suas ferramentas, e as empregou da melhor forma. Independentemente disso, "A Greve" é muito mais do que um pouco de história. É a própria história viva.

E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:



“of all the arts, for us the cinema is the most important” - Lenin

Para vocês, o cinema é um espectáculo. Para mim, é quase um meio de compreender o mundo.” – Maiakovski, 1922

Não são de estranhar estas citações vindas de duas pessoas tão profundamente comprometidas com a ascensão do proletariado. Na Era da reprodutibilidade técnica da arte um filme podia ser largamente reproduzido e distribuído, chegando assim mais eficazmente às massas, também por num país onde a maioria dos trabalhadores era analfabeta serem mais facilmente compreendidos, e naturalmente o cinema foi tido desde então como uma ferramenta fundamental para se propagandear o ideal proletário.

A Greve é, de uma forma bem mais óbvia que nos filmes anteriores deste Ciclo, uma obra preocupada em ser útil e ter uma função social construtiva e poder ser fonte de reflexão e transformação da sociedade. Para os artistas comprometidos com a causa proletária a arte não deve nunca se resumir à arte pela arte, e Sergei Eisenstein procurou novas formas de expressão capazes de mobilizar as pessoas para a revolução em curso. Neste filme experimental relativamente a essas novas formas de expressão, nomeadamente na montagem, ele é coerente com essa postura progressista. Se noutros filmes do Ciclo a postura era quase documental da situação e da luta dos trabalhadores, Eisenstein vai além da descrição da realidade e propõe cinematograficamente uma análise e tática para acção dos trabalhadores. Em A Greve o foco está definitivamente em mobilizar.

Quando se fala de Eisenstein é ponto comum a referência ao seu contributo revolucionário quanto à montagem. Não vos sou capaz de dizer muito relativamente a isso, pouco sei de Cinema, mas como espectador tento absover o máximo daquilo que vejo e, como tal, digo-vos que assim que começamos a ver o filme, salta imediatamente à vista a rápida transição de imagens sem uma lógica e narrativa linear. Tão depressa se vê um conjunto de pessoas a correr como na imagem seguinte estão deitadas, sem se mostrar o que lhes aconteceu entre os dois momentos. Por que motivo se fez isso? Qualquer obra artística é em algum grau uma co-autoria entre o seu autor e o espectador, e este último é levado por Eisenstein a explicar e a completar mentalmente o hiato entre uma imagem e outra, mobilizando o espectador a uma participação activa no filme. O objectivo é claro: levar as massas à acção, a participarem na revolução.

Outro elemento importante, que eu saiba raro no cinema, mas também nas outras artes, é a de se ter um herói que não é um indivíduo, mas é um sujeito colectivo: a classe operária. Os restantes personagens colectivos, mesmo quando corporizados por um único indivíduo, não deixam de ser uma referência ao papel social de um grupo, como o gerente, o capataz, o espião ou o provocador.

Há também o recurso a várias metáforas visuais. O ser gordo, que era um luxo classe só ao alcance da burguesia ou da aristocracia czarista; a cena fantástica em que o patrão esmaga um limão, enquanto a polícia reprime os trabalhadores; a simultaneidade da paragem das máquinas com a paragem dos trabalhadores; e o curiosíssimo uso de animais, gatinhos :-) e outros na famosa cena do matadouro. Não avanço muito relativamente a essas metáforas para não fazer excesso de spoiler nem tirar a oportunidade a cada um de vós a interpretá-las à vossa maneira. Afinal, o objectivo de Eisenstein é exercitar o sentido crítico de cada um dos espectadores, para refinarem a análise da realidade, e levar cada um de nós para a acção política e transformação do mundo.
por Bruno - Leitura Capital*

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sábado, 25 de abril de 2015

Os Santos Inocentes (Los Santos Inocentes) 1984



Algures no interior espanhol, na década de sessenta. Paco e a sua esposa Régula são muito pobres, e trabalham para um fazendeiro muito rico. Eles têm três filhos, um deficiente e os outros não podem ir estudar porque têm de trabalhar. Quando o irmão de Régula é despedido do sitio onde trabalhava, vem instalar-se em casa dos familiares... Lentamente o filme vai revelando a vida destes pequenos peões, de como são explorados e como são explorados pelos patrões, Don Pedro e Ivan. As crianças crescem envergonhadas pelo tratamento e pelo desprezo dado aos seus pais, o poder e os jogos sexuais de quem controla o seu destino. 
Evocando os filmes de Carlos Saura, nos seus retratos alegóricos de paisagens culturalmente e socialmente arraiadas (principalmente em "La Caza"), junto com a ironia da burguesia de Luis Buñuel, "Os Santos Inocentes" de Mario Camus apresenta uma acusação cáustica e potente da desumanidade (e corrupção) do privilégio, estratificação de classes, e marginalização. Adaptado do romance do escritor espanhol Miguel Delibes o filme traça as histórias pessoais de uma família de camponeses na província da Extremadura, na propriedade supervisionada por Doña Pura (Ágata Lys) durante os anos sessenta, quando Franco solidificou a sua fortaleza (ou melhor, estrangulou) sobre o país, com o poderoso apoio de ricos poderosos como Doña Pura, que representava a relação incestuosa entre a classe alta e a igreja católica. 
Francisco Rabal, que interpreta Azarias, ganhou o prémio de melhor actor pela sua interpretação neste filme, que também ganhou uma Menção Especial pelo Jurí desse ano. É o único personagem do filme em contacto com a terra, e os seus ritmos e mistérios. O seu amor por um animal de estimação, cruelmente abatido por Ivan, irá provocar um genuíno protesto contra a manipulação da classe superior. Rabal é reminiscente de Zorba, o Grego - é um robusto individualista, e a sua presença nas terras irá ser uma ameaça para os proprietários da terra.

E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:


Subserviência – é a palavra.

Saudosos de outros tempos, em que os trabalhadores tinham menos liberdade, frequentemente falam que “antigamente as coisas não estavam bem, mas havia respeito”. Sobretudo nos meios rurais este respeitinho era ainda mais respeitoso, quer relativamente ao senhor da terra, quer ao Senhor dos Céus.

Para sobreviver o trabalhador sabia que o melhor era baixar a cabeça e dizer “Sim senhor”. Assim, sempre lhe sobrava algum pão para si e para a sua família. Antes pouco que nada.

Há dias, num comentário a este Ciclo no facebook, um seguidor do M2TM fazia um comentário interessante. Escreveu ele que não concordava que se chamasse ao proletariado de classe progressista, pois grande parte dos indivíduos do proletariado são bastante conservadores. Este filme reflecte isso mesmo com a conformista subserviência dos trabalhadores rurais aos seus senhores. No entanto, este comentário levanta uma confusão muito comum que devo desde já esclarecer. O que define a classe social dos indivíduos não é a sua forma de pensar, mas a sua posição relativamente aos meios de produção. Logo, há burgueses com modo de pensar progressista, que se posicionam politicamente do lado da causa proletária, como há vastas camadas do proletariado com mentalidade conservadora, burguesa. E é natural que assim seja, afinal o pensamento dominante de uma época é o pensamento da classe dominante, logo não é de estranhar que a maioria dos trabalhadores pense da forma como a burguesia tende a pensar.

Relativamente ao termo progressista. Significa que tal como a burguesia outrora foi a classe social progressista que negou o feudalismo, agora é a vez do proletariado ser a classe progressista que negará o capitalismo e construirá uma nova sociedade no futuro. Mas este tópico não está relacionado com o filme de hoje, portanto voltemos ao assunto acima, e acredito que o melhor é eu tentar tornar mais claro o supra-referido com a introdução de dois conceitos: base e superestrutura.

Há uma relação dialéctica entre a «base» (fundações), constituída pelas formas de propriedade e pelas condições sociais de existência, e a «superestrutura», constituída pelo modo de pensar, visões do mundo, sensações e ilusões. O mundo das ideias não se desenvolve autonomamente, mas radica na «base», isto é, no modo de produção da época. Nunca os dois conceitos deixam de interagir entre si, sendo a «base» moldada pela «superestrutura», como também, tal como foi dito, a «superestrutura» é moldada pela «base». Por outras palavras, como disse o Carlos, Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.

A consciência dos trabalhadores rurais deste belo filme é fruto do seu ser social desprovido de propriedade. O latifundiário pode tratar os seus pobres trabalhadores abaixo de cão. Estes últimos, sem conhecerem a possibilidade de rebelião, entregam-se à necessidade de serem subservientes ao ponto de se confundirem a um cão. A metáfora faz-nos sorrir no filme, mas na vida real faz-nos a quase todos viver com palas nos olhos como os burros.

por Bruno - Leitura Capital*

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Onde Bate o Sol (Onde Bate o Sol) 1989

Laura vive em Vouzela com o marido, bastante mais velho do que ela. Quando Nuno, seu irmão, a visita, apercebe-se de que Laura não tem uma vida feliz. Por sua vez, Nuno enceta amizade com um ajudante na quinta do seu cunhado. Começa, então, a sentir algo que, antes, nunca experimentara. As circunstâncias colocam Laura e Nuno um contra o outro, até que - esgotadas as possibilidades de saída para as situações em que se encontram - voltam a aproximar-se...
"“Onde Bate o Sol”, segunda longa-metragem de Joaquim Pinto realizada em 1989, abre com um largo plano do céu rasgado pelos vapores de um avião, parecidíssimo com um que Fernando Lopes também fez pelos inícios de “Matar Saudades”. Tanto num como noutro o avião surge-nos longíssimo, praticamente um risco animado na pelicula, para nos localizar, e para o filme se localizar, longe dos aeroportos, das capitais e de certas leis.
Assim como no belíssimo e cosmicamente sussurrado “Uma Pedra no Bolso”, tudo parece e é fragilidade, filigrana, mínimo, dos meios técnicos aos actores e não-actores, para nos momentos decisivos onde as coisas acontecem e abanam se tornar extremamente coeso, forte, físico. Dessa horizontalidade etérea da primeira imagem que logo desce em panorâmica total para as marcas e cicatrizes de um rosto até à profundidade em que o filme fecha, com dois seres caminhando verticalmente e mesmo desvanecendo-se no que pode ser a consumação dos segredos e descobertas de uma trama igual e logo diferente de todas as outras, tudo se pode passar.
Rodado e vivido em Vouzela e em idênticas regiões ingremes e agrestes, solares e faiscantes, a cidade e a sua poluição vão ser um lugar a evitar e o comboio vai teimar em não regressar desde a severa chegada encantatória e ambígua do protagonista. Quando esse regresso infame se dá, não pode durar. Protagonista que encontra um mundo que parecendo tão fora dele é verdadeiramente mundo, tão às avessas como o que deixou e tão propicio à perdição, efabulação e caos. É a irmã que parece estar a desperdiçar a vida nas aparências quando podia ter tudo a seus pés, o ajudante da quinta onde tudo se passa que lhe mostra o que se calhar nunca esperou, sentimentos abafados e proibições imemoriais, enfim, também a letargia e desinteresses de que parece padecer a encontrarem terreno fértil para vingarem. A cena do primeiro almoço é assustadora de espelho e projecção de um ontem como hoje e assim de um fado muito nosso."
Por José Oliveira. Podem ler mais, aqui

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sexta-feira, 24 de abril de 2015

Uma Pedra no Bolso (Uma Pedra no Bolso) 1988



Uma história de iniciação e embate com a idade adulta: em férias na estalagem de uma tia à beira mar, Miguel encontra Luísa, o pescador João e o Dr. Fernando, três personagens que marcarão a entrada da sua primeira.
"Uma equipa de filmagens de quatro pessoas, uma longa-metragem autofinanciada  em grande parte, a aventura calculada e apaixonante de fazer um filme sem estar à espera de subsídios, um projecto de cinema em perfeita adequação à magreza de meios que não de vontade de cinema nem de rigor narrativo: assim nasce um filme livre, moderno, atento, disponível, estimulante. No centro da ficção, o fim da inocência, a iniciação de um miúdo às encruzilhadas da vida, às desilusões.
O filme mistura habilmente amadores e profissionais, daqueles esperando o rigor e o imprevisto (e é mérito da câmera de Joaquim Pinto ter esperado por isso), destes colhendo a solidez. O resultado é um filme vivo e fresco, dolorido quanto baste, que sabe que o cinema é acção e sussuros, uma história e pontas soltas por onde o espectador possa investir por sua conta e risco.
O resultado é uma das maiores surpresas do cinema português dos anos 80."  Jorge Leitão Ramos

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Actas de Marusia (Las Actas de Marusia) 1976


Depois de uma revolta mineira em Marusia (Chile, 1907), e a descoberta do corpo de um capataz da mina britânica Marusia Mining Co. - assassinado por um trabalhador - começa um confronto entre empregadores e trabalhadores, e é desencadeada uma campanha de intimidação contra os mineiros, que defendem os seus direitos. Dada a força do movimento a empresa pediu ao exército para intervir, que começa a fazer uma perseguição implacável aos trabalhadores, que servirá de exemplo para todos os movimentos da classe operária. Embora a repressão faça enfraquecer o movimento, um dos líderes encarrega-se de difundir a revolta para outros sectores.
Depois do golpe de estado de Pinochet (Chile, 1973), o chileno Miguel Littin refugiou-se no México. Aí dirigiu em 1975 esta monumental obra, a partir de um romance homónimo de Patricio Manns. O filme dá-nos conta de uma rebelião de trabalhadores no norte do Chile, e a sua repressão brutal. É um filme visto como parte do debate sobre o fracasso da Unidad Popular, e é uma interpretação do movimento trabalhador e popular do século XX chileno. Filmado no deserto de Chihuahua, esta obra contou com um orçamento bastante elevado, que incluía actores de peso como o italiano Gian Maria Volonté, ele próprio já habituado a filmes de teor político, no seu país de origem. A banda sonora era de Mikis Theodorakis e Ángel Parra, tornando-se o filme um grande êxito de bilheteira. A nível de festivais, fez parte da seleção oficial de Cannes, em 1976, tendo também sido nomeado para o Óscar de melhor filme em lingua estrangeira, nesse mesmo ano.
Miguel Littin, no final da década de sessenta fazia parte de um movimento conhecido como "Nuevo Cine Chileno", de onde faziam parte nomes como Raul Ruiz, Helvio Soto e Aldo Francia. Os filmes deste grupo de realizadores vinculavam denuncias sociais, e temas políticos.

E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:


A realidade é dura de aceitar. Todos nós, cada um a seu grau, ao invés de aceitar a realidade como ela realmente é, preferimos ceder à tentação de desenvolver um enredo teórico da "realidade" que se adapte aos nossos desejos. Há sempre uma distância entre como analisamos e compreendemos o Mundo, e como ele é de facto. O desafio de minimizar esta distância é sempre um exercício de transformação pessoal, frequentemente doloroso, mas fundamental. Cada um de nós tem o dever de enfrentar a realidade, desafiar-se, e aprender. Só se tomando conhecimento do Mundo como ele é, através das leis naturais, matemáticas e sociais, que conseguimos transformá-lo.

A dificuldade de aceitar a realidade concreta é natural e frequente. Todos nós já viramos a cara para o lado, ou mudamos de canal, perante imagens televisivas que demonstram a violência extrema de uma guerra. Uma criança desventrada nos braços de uma mãe que chora, num bairro residencial semelhante aos nossos, mas totalmente destruído à bomba, não é o mesmo que ver gatinhos no youtube. É mais fácil ignorar, por exemplo, a brutalidade dos bombardeamentos dos países da NATO (OTAN) à Síria, Líbia, Iraque... (fico-me por aqui), do que preocuparmo-nos seriamente com o assunto e vermo-nos obrigados a tomar posição e a agir. O mesmo acontece quando é algo que nos afecta mais directamente. Os gatinhos são mais fofinhos.

A narrativa propagandeada pelos média, durante todos estes anos, não está conforme com a verdade e nós, os «ocidentais», afinal não temos sido os «bons» da história. Os recursos de África têm sido desde há muito saqueados pelos europeus, os recursos da América latina saqueados sobretudo pelos EUA, e isto tem sido feito à base da violência extrema, seja através de terrorismo de estado, inclusivamente por governos locais lacaios, quer por acções militares – lembram a Operação Condor? Os massacres foram e são frequentes.

Por que haveria de ser diferente hoje? Afinal, o capitalismo continua a ser capitalismo. E o imperialismo a ser imperialismo. Pode os ideólogos da burguesia desenvolver e propagandear uma narrativa convincente para justificar todas as invasões e golpes económicos e de Estado por esse mundo fora por parte dos países norte-atlânticos, mas sabemos que a razão está na conquista de novos mercados e recursos. Qual é a admiração de os povos precisarem de pegar em armas para se defender?

Lembremos um dos primeiros grandes ensinamentos da história: a Comuna de Paris, 1871 – o primeiro governo operário da história!

Em 1870 o regime burguês francês envolve-se numa guerra desastrosa com a Alemanha. Com o Exército Alemão às portas de Paris os operários da Cidade armam-se para a defender. O Governo Burguês capitula e assina um armistício com a Alemanha. A tentativa de desarmar os operários parisienses precipita a insurreição. A 26 de Março é eleito o Conselho da Comuna. As transformações políticas e sociais ocorridas na Comuna vão longe demais, são demasiado progressistas para a burguesia francesa. O movimento alastra a outras Cidades, embora a grande massa camponesa se tenha mantido apática. Foi então a burguesia francesa, para esmagar o movimento proletário, não hesitou em estabelecer um acordo com o exército alemão que acabara de arruinar a sua pátria. O Exército Francês e Alemão entram em Paris a 21 de Maio. A resistência dos comunards é heróica, mas são esmagados: cerca de 35.000 mortos e 7.500 deportados. Termina assim, afogado em sangue, o primeiro ensaio de um poder político dos trabalhadores. A burguesia europeia aplaude a carnificina, e Thiers - o líder da burguesia francesa - proclama: "Agora o comunismo está morto para sempre!".

Não vou falar das Grandes Guerras, e que se viram trabalhadores a lutarem contra outros trabalhadores pelos anseios das burguesias de vários pólos imperialistas pela disputa de mercados e recursos do planeta. Não vou falar dos povos do Iraque, Líbia e Síria, nem do Afeganistão. Muito menos dos palestinianos. Ou de outros frequentemente dados como terroristas pela narrativa dos média corporativos, como o povo que luta da Colômbia, do Curdistão, da Republica Popular de Donetsk, da Irlanda, do País Basco, do México… da Somália ou do Sahara Ocidental... Pequenas e grandes lutas, armadas ou não, às vezes somente com pedras contra canhões.

Este filme faz que pensar sobre estas questões. Soubesse o povo de Marusia compreender os ensinamentos da Comuna de Paris, e de muitos outros exemplos, talvez se tivesse preparado melhor e elevado a sua luta a outros patamares. A dura realidade é que classes antagónicas não se conseguem reconciliar, apesar das aparências e de todos gostarmos de gatinhos, é fundamental compreender que a luta será mais ou menos violenta conforme a resistência dos capitalistas. São estes que querem que a história pare, os proletários têm uma nova sociedade nas mãos para construir.

Actas de Marusia é um grandioso filme com uma história baseado em factos verídicos, mas com uma liberdade artística que nos oferece uma beleza rara e peculiar para um filme tão duro. Poesia em estado cinematográfico. Comovente. Para mim, é umas das grades pérolas deste Ciclo do M2TM.
por Bruno - Leitura Capital*

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quinta-feira, 23 de abril de 2015

Sacco e Vanzetti (Sacco e Vanzetti) 1971



Em 1920, os anarquistas italianos imigrantes Niccola Sacco (Riccardo Cucciolla) e Bartolomeo Vanzetti (Gian Maria Volonté), são condenados à morte, falsamente acusados de um roubo e de um assassinato. Na verdade, eles foram condenados por causa das suas convicções políticas, num dos julgamentos mais vergonhosos e hipócritas da história da humanidade. O filme é a história do julgamento.
Uma ronda de suspeitos do costume na américa dos anos 20, incluía comunistas, socialistas, e outros dissidentes políticos. Sacco e Vanzetti eram seguidores do anarquista Luigi Galleani que foi deportado por defender a violência, e cujos sócios eram suspeitos de vários atentados terroristas. Mais por causa desta associação do que propriamente evidências físicas, os dois foram presos e acusados dos crimes. A investigação policial foi uma anedota, e estava cheia de inconsistências, e desde cedo era visível que estava programada a culpa dos homens, a todo custo.
O que ninguém consegue explicar é porque é que Sacco e Vanzetti não receberam o apoio que a Constituição lhes prometeu. O calvário de ambos é um capítulo na história americana que engloba a revogação preliminar das liberdades civis garantidas a julgamento pelos mídia, e o destino do imigrante dissidente político a entrar em confronto com um todo poderoso sistema legal, dirigido por nativos que respondem apenas a eles próprios.
 Sacco e Vanzetti (1971) apresenta-nos a dramatização deste eventos, num estilo quase documental e dá destaque ao extenso julgamento dos dois homems. Contando com uma realização de um desconhecido Giuliano Montaldo, concorreu no festival de Cannes de 1971, tendo conquistado o prémio de melhor actor (Riccardo Cucciolla).

 E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:



A vida é um caldo de ilusões e prisões. Escreveu Brecht que “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. A ilusão de liberdade e prosperidade em terras estado-unidenses por muitos milhares de emigrados italianos no século passado, definharam rapidamente perante o choque com a realidade, mas Sacco e Vanzetti antes de emigrarem já eram anarquistas, um operário e um vendedor de peixe politizados, conscientes que a opressão burguesa existe onde quer que o capitalismo exista, seja em Itália ou nos States. Contudo havia ainda quem acreditasse nas instituições burguesas, incluindo na Justiça.

Sacco e Vanzetti, uma história apaixonante de dois anarquistas italianos confrontados com os limites da liberdade burguesa, que lutaram por uma sociedade sem exploração do homem pelo homem da melhor forma que sabiam. E foi esse o “crime” que ambos cometeram.

Julgados por um crime que não interessa à Lei se cometeram, ou não fosse uma característica do fascismo ter as leis escritas no papel como mera fachada formal, vai ficando gradualmente claro durante o desenrolar da narrativa a impostura e o lodo que é a justiça burguesa para homens do trabalho. É enquanto se desenvolve este definhamento de ilusões perante a Justiça, como se ela pudesse ser neutra e procurasse ser justa, que o filme ganha um cariz poético. Está a decidir-se a condenação à morte de dois homens apenas, ou a tentar-se algo mais?
"If it had not been for these things, I might have lived out my life talking at street corners to scorning men. I might have died, unmarked, unknown, a failure. Now we are not a failure. This is our career and our triumph. Never in our full life could we hope to do such work for tolerance, for justice, for man's understanding of man as now we do by accident. Our words--our lives--our pains--nothing! The taking of our lives--lives of a good shoemaker and a poor fish-peddler--all! That last moment belongs to us--that agony is our triumph."

Bartolomeo Vanzetti
A Lei não é igual para todos. Todos o sabem, inclusivamente aqueles que se iludem com a possibilidade de haver neutralidade. É um mito que persiste, mesmo quando quase todos os dias assistimos pela TV que a melhor forma de roubar impunemente é fazê-lo aos milhões e através da banca. Ao mesmo tempo, a condenação à prisão por se roubar comida para matar a fome inspira a arte há séculos, por exemplo, recordemos Jean Valjean em Os Miseráveis, de Victor Hugo, preso por roubar um pão. É a arte a reflectir a realidade, tal como faz o filme de Giuliano Montaldo que vamos hoje ver.

Ennio Morricone e Joan Baez oferecem o melhor das suas longas carreiras à banda sonora deste filme e complementam a poesia do filme. Envolvem de beleza o tema que evidencio nesta obra: a neutralidade é um mito, nas Leis e nos tribunais inclusivamente.
por Bruno - Leitura Capital*

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Norma Rae (Norma Rae) 1979



Norma Rae (Sally Field) é uma viúva corajosa, de 31 anos (o marido morreu numa briga de bar), com dois filhos (um dos quais é ilegítimo), que não tem uma educação formal mas possui um bom senso comum. Ela é uma trabalhadora de salário mínimo numa pequena fábrica têxtil no sul dos Estados Unidos, com condições de trabalho deploráveis (o filme é rodado no Alabama).  O pai, um operário da fábrica (Pat Hingle), morre por falta de atendimento médico adequado, enquanto a mãe (Barbara Baxley) fica surda com o ruído excessivo dos equipamentos da fábrica. Os donos da fábrica recusam-se a permitir que os trabalhadores da fábrica possam ter um sindicato, para resolver as suas queixas, mas aparece em cena um agressivo intelectual e liberal chamado Reuben (Ron Leibman), que vai fazer dupla com Norma Rae, que apesar de comportamentos opostos fazem um relacionamento platónico, ganhando a aceitação da união dos trabalhadores, apesar de contrariarem os patrões.
Muitas pessoas provavelmente reviraram os olhos quando Sally Field foi anunciada como protagonista de um filme de Martin Ritt sobre o sindicalismo, e a luta pelos direitos dos trabalhadores. Por esta altura, ela era uma ilustre desconhecida, conhecida mais pelo papel na série "The Flying Nun", que protagonizou entre 1967 e 1970. Acabaria por se tornar numa enorme revelação em "Norma Rae", com um desempenho maravilhosamente doce, mas de aço, que lhe iria valer o primeiro Óscar da sua carreira, e transformar-se numa actriz de primeiro plano, onde se manteria por alguns anos.
"Norma Rae" tocou muitos corações quando foi originalmente estreado, e parte do seu sucesso deveu-se à prestação incrível de Sally Field. Em 1978 a verdadeira Norma Rae (Crystal Lee Jordan) fez pela indústria têxtil do sul dos Estados Unidos, o que Erin Brockovich fez pelas vítimas da  PG&E em Hinkley. A sua coragem chamou a atenção de dois jovens produtores de Hollywood, que ficaram obcecados por contar a sua história. A personagem do título, Norma Rae, é uma amálgama das mulheres da pequena cidade, que arriscaram tudo por uma vida melhor. Depois de muitas actrizes terem recusado o papel (incluindo três que vieram a concorrer contra si na corrida aos Óscares desse ano), este acabaria por ficar, e muito bem, nas mãos de Sally Field.
Mais de três décadas depois, continua a ser um lembrete histórico sobre as condições de trabalho num passado bastante recente. Mas para lembrar também que os sindicatos, representados aqui por Reuben Warshawsky, continuam a arriscar a sua própria segurança para introduzir os conceitos de União aos trabalhadores hesitantes de todo o mundo. 
 

E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:



Há filmes que usam a fantasia para nos fazer reflectir sobre a vida. Há outros que se confundem com a própria vida ao ponto de parecer um documentário. Este é um deles.

Norma Rae, mulher, trabalhadora têxtil, é a personagem principal que dá nome ao filme. Do nada, como se algo pudesse surgir do nada, um sindicalista chega à cidade decidido a organizar os trabalhadores da fábrica de algodão. Neste homem, Reuben Warshowsky, podemos vislumbrar o espectro de Tom Joad, de Vinhas da Ira, que não era nem mais nem menos do que um operário em construção que no final do filme parte em luta, desaparecendo no horizonte como quem se dissolve num colectivo de luta pelos explorados, os humildes, a classe trabalhadora. O espectro de Tom Joad vive onde quer que se lute e, em Norma Rae, reaparece corporizado no sindicalista Reuben Warshowsky, pois nada surge do nada e ninguém nasce revolucionário. Aprende-se.

O filme aborda imensos pontos importantes relativamente à vida dos trabalhadores, mas nem sempre explícito, e acredito que haja muitos que possam assistir a este filme sem notarem na sua riqueza como obra documental e formativa. Documental na descrição de situações como a segurança no trabalho, violência e submissão patriarcal e patronal, preconceito anti-comunista, uso do álcool para entorpecer as mágoas após a saída da fábrica, racismo...; formativa, no sentido em que oferece elementos de como se cria e se desenvolve a organização dos trabalhadores através de um sindicato. Não basta reconhecer que a união faz a força, é preciso muito mais.
  • é preciso muito trabalho, que resulta frequentemente em prejuízo próprio e familiar, coragem, sobretudo dos activistas;
  • é preciso reconhecer que esses activistas trabalham muitas vezes em grupos muito pequenos e com aparente falta de solidariedade dos demais;
  • é preciso perceber que a luta faz-se de avanços e recuos, tal como acontece no filme quando um arrojo dos trabalhadores tem como retaliação o aumento de horas dos turnos;
  • é preciso persistência, pois os resultados das lutas nem sempre são óbvios ou imediatos; 
  • é preciso ter atenção aos provocadores e a boatos que surgem com o objectivo dividir e confundir os trabalhadores;
E muito mais, mas fica para a atenção do espectador.

Contudo, há um elemento fundamental deste filme do Ciclo e, para vos ajudar a perceber do que falo, vos conto uma pequena história.

Um dia, na Festa do Avante, tive finalmente oportunidade de conhecer o Rui – só mais um anónimo chamado Rui. Uma amiga foi chamá-lo para que nos conhecêssemos. Ele estava muito ocupado, mas para podermos conversar um bocado interrompeu por 10 minutos a sua tarefa subversiva: descascar batatas. Foi então que na minha ainda muito insipiente militância reparei no óbvio: descascar batatas era um acto revolucionário! Depois, claro está, ficou por compreender o que faz uma acção tão comum do nosso dia-a-dia ganhar a qualidade de revolucionário. O filme de hoje ajuda a compreender: que coisa faz com que uma acção ganhe caracter revolucionário?

Nesta sociedade onde a substância tente a reduzir-se ao espectáculo e entretenimento, também no cinema se caí na tendência de se destacar as cenas mais espectaculares, tais como uma revolução, um massacre, um grande discurso ou um acto heróico, mas, o filme Norma Rae tem a virtude de enfatizar o cariz revolucionário das pequenas acções do dia-a-dia. Tal como o Rui, ou qualquer outro revolucionário digno desse nome, se vê como Norma Rae a realizar num conjunto imenso de tarefas rotineiras, burocráticas, aborrecidas, cansativas, mas necessárias. Não há nada de espectacular nisto.

Norma Rae, a heroína deste filme, confirma o conhecido adágio: a mulher que luta é a mais bonita.

por Bruno - Leitura Capital*

terça-feira, 21 de abril de 2015

Os Camaradas (I Compagni) 1963



O cenário é uma fábrica têxtil em Turim, no final do século XIX. Cerca de 500 trabalhadores suportam turnos de 14 horas, debaixo de situações extremas, desde o calor, poeira, o perigo de sofrer um acidente de trabalho, e são mal pagos. Um dos trabalhadores fica com a mão mutilada por uma máquina, situação que serve de impulso para que os outros, pelo menos, pensem mudar as condições de trabalho. Talvez graças à sorte ou ao destino, um professor e socialista chamado Sinigaglia (Marcello Mastroianni) está de passagem pela cidade (em fuga de crimes políticos), e oferece uma ajuda na organização dos trabalhadores. Segue-se uma greve, que se arrasta por várias semanas, testando a vontade dos trabalhadores...
Esta sinopse faz o filme parecer mais um melodrama sobre as más condições das classes trabalhadoras. Na realidade, é muito mais do que isso, e o que o faz ser tão brilhante e surpreendente é a forma como é apresentado, tornando-o também numa obra de entretimento. Além da tragédia, também há um pouco de romance, comédia, farsa, comentário social. O argumento e o trabalho de realização fazem um trabalho magistral, ao desenvolver várias personagens em vários sub-plots numa história bastante multidimensional. A maioria dos filmes politicamente orientados são polémicos, o que por vezes os distancia do grande público. "I Compagni" é tão envolvente, tão animado, tão cheio de personagens vibrantes, que o aspecto da mensagem da história funciona a um nível quase sublimar.
Mario Monicelli (mais conhecido no território da comédia) e o produtor Franco Cristaldi tiveram de ir até à Jugoslávia para encontrar uma fábrica em pleno funcionamento, com as suas dezenas de teares movidos por um motor a vapor, e activados por eixos de transmissão. O edifício da fábrica parece um acidente prestes a acontecer. Com figurinos e cenários tão rigorosamente preparados e um look típico do século XIX a ser muito bem mantido, desde os quartos baratos alugados pelo trabalhadores, aos restaurantes chiques onde Niobe encontra os seus clientes.
Refira-se que o filme foi nomeado para o Óscar de Melhor Argumento Original, em 1965.

E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:



As greves surgem e propagam-se onde surgem e se propagam grandes fábricas. E mesmo nos países desindustrializados, como Portugal, as greves são mais frequentes no locais onde há maiores concentrações de trabalhadores.

Como explicar este fenómeno? De facto o capitalismo conduz necessariamente ao choque entre os operários e os patrões, e onde a produção se torna grande produção a luta desenvolve-se necessariamente para a luta grevista.

Como e por que motivo isso ocorre? Expliquemos mais detalhadamente.

O capitalismo é um sistema de sociedade em que os meios de produção (terra, fábricas, instrumentos de trabalho, etc.) são propriedade de um pequeno grupo de pessoas – agrários e capitalistas -, enquanto a grande massa do povo não possui nenhum ou quase nenhum meio de produção. Os capitalistas empregam os trabalhadores e obrigam-nos a produzir determinado produto ou serviço que vendem no mercado. Em troca os trabalhadores recebem apenas parte do valor que produziram – é o salário. A outra parte da riqueza produzida por eles, que sobra da venda do produto vendido, fica na mão do patrão. É desta parcela alienada do trabalho dos trabalhadores que resulta o “Deus” da nossa sociedade: o lucro. Todos sabemos que quanto menos um patrão pagar de salários, maior é o seu lucro. Quanto maior for o salário dos trabalhadores, melhores condições de vida estes usufruem para si e para os seus filhos. É um mundo de liberdades: o capitalista é livre de procurar o trabalhador que queira, e por isso procura o mais barato; o trabalhador é livre de vender a sua força de trabalho ao patrão que queira, e por isso procura o que lhe pague mais. Portanto, o operário está sempre a regatear com o patrão, luta com ele por causa do salário.

Contudo, pode um operário, ou qualquer outro tipo de trabalhador, travar esta luta sozinho? Por motivos que não cabe a este post desenvolver, o capitalismo torna cada vez maior a massa de seres humanos caídos em ruina. O desenvolvimento técnico não é colocado em prol da sociedade em geral, mas em prol da classe dominante que a tudo submete em nome do lucro. Por isso, o desenvolvimento técnico, e consequente aumento da produtividade, é causa de mais desemprego ao invés de proporcionar à massa trabalhadora mais tempo livre. Logo, um exército de desempregados cada vez maior e mais desesperados se predispõem a salários e condições cada vez mais degradantes.

A progressiva ruina do povo chega a um grau em que por todo o lado há sempre massas de desempregados, então o trabalhador isolado torna-se imponente perante o capitalista. Há sempre alguém com a necessidade de ocupar o seu lugar. Isolados, os trabalhadores tornam-se presa fácil. O capitalista adquire a possibilidade de esmagar completamente os trabalhadores, empurrá-los para condições de trabalho e sociais dignas do séc. XVIII, jornadas de trabalho sem limite de tempo, e de sol a sol, crianças de 8 anos a descer as minas, praças de jorna, falta de cuidados de saúde, fome…

O filme de hoje torna a resposta a esta situação evidente. O operário, vendo que sozinho cada um deles é completamente impotente, ameaçados de parecer sob jugo do capital, aprendem o valor da unidade e da greve. Os operários têm necessariamente de se defender em conjunto, organizar greves para impedir a queda dos salários ou fazê-los subir.

A princípio é frequente os operários não compreenderem muito bem o que significa, nem o que fazer numa greve. Apenas querem fazer sentir a sua indignação, sem consciência que têm o poder nas mãos, e um mundo a ganhar. A verdade dura e crua para a burguesia é esta: nenhumas riquezas trarão qualquer benefício aos capitalistas se estes não encontrarem trabalhadores dispostos a aplicar o seu trabalho aos instrumentos e materiais deles e a produzir novas riquezas. Quando a greve faz parar as máquinas, a construção das casas, o cultivo das terras, os caminhos-de-ferro e rodoviários, a importância e poder do trabalho fica à vista de todos. É então que o outrora dócil e calado operário, que nunca contradiz o patrão, proclama em voz alta as suas reivindicações e direitos, lembra aos patrões todos os tipos de perseguição de que foram alvos, e de punho fechado pensa em todos os seus colegas em greve e não apenas em si próprio.

Tal como o filme de hoje ensina, não há necessidade de hoje abdicarmos dos conhecimentos aprendidos pelos nossos antepassados em luta. É então que no filme um espectro de Tom Joad – ver post do filme anterior – surge, um professor enviado pelos “vermelhos” para ajudar a organizar a luta dos operários. Pois, sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Muito ajudou o saber deste experiente sindicalista vindo de fora, para elevar qualitativamente a acção grevista deste operário do filme. É que fazer uma greve não é nada fácil. Nada mais acrescentarei, o resto fica dito pelo próprio filme. E que filme! Uma verdadeira preciosidade.
por Bruno - Leitura Capital*


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segunda-feira, 20 de abril de 2015

As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath) 1940



 Quando Tom Joad (Henry Fonda), regressa para a sua quinta no Oklahoma, depois de quatro anos na prisão, descobre que já nada é o que era. Estamos na década de 30, vive-se a depressão, e a sua família perdeu a casa e a quinta para o banco. Assim começa uma jornada incrível para Tom, ao ver a injustiça social à sua volta, ele muda de um pequeno criminoso para um sindicalista.
"As Vinhas da Ira" é um filme monumental feito por um realizador monumental, John Ford, baseado num livro brilhante de outra figura monumental, John Steinbeck. As verdades estabelecidas no livro e no filme, podem ser tão verdadeiras hoje como eram então. Tom leva a sua família em busca de trabalho e a promessa de uma vida melhor, na califórnia, mas tudo o que encontra são mentiras, corrupção policial, e exploração empresarial dos trabalhadores desesperados. Uma situação muito parecida com a dos trabalhadores migrantes provenientes do México e América Central, em busca do suposto sonho americano. Interessante, o argumento, adaptado por Nunnally Johnson, é, na realidade, muito mais optimista que o livro. O filme oferece alguns vislumbres de esperança ao clã Joad, e oferece alguma cor à escuridão que é o livro (assim como a algumas idéias políticas mais extremas).
Há um toque de sentimentalismo em "As Vinhas da Ira". É apenas uma sugestão, e nunca é um factor detractor dentro do filme. Os actores nunca permitem que o argumento de Johnson se torne demasiado sentimental. Os olhos sondantes de Henry Fonda, a mágoa do sorriso de Jane Darwell, o olhar vago de Dorris Bowden, e o rosto de derrotado de Frank Darien estão sempre presentes para atirar qualquer sentimentalismo para o lado. Ou, pelo menos, para garantir que o sentimentalismo seja merecido. Se houver qualquer sentimentalismo é gerado pela dureza que os seus personagens enfrentam em cada frame.
John Ford ganhou com este filme o seu segundo Óscar para melhor realizador, e, "As Vinhas da Ira, está certamente, entre as melhores obras do realizador.

E agora a visão sobre este filme, do Bruno - convidado do M2TM:



Primeiro, agradeço desde já o convite do Chico para este ciclo. Sinto-me honrado por fazer um pouco parte do M2TM. O azar é vosso que vão gramar com alguns textos meus. Espero que gostem.

Nós, trabalhadores, somos todos operários em construção. Seja de fato-macaco ou engravatado, de tijolo ou software na mão, trolha, carpinteiro, designer, arquitecto, gestor, engenheiro, professor, agricultor, somos todos operários em construção. Tudo o que é construção humana é obra das nossas mãos. Inclusivamente o lucro dos patrões. Mas compreendê-lo não é fácil, as respostas não se encontram na superfície das coisas, é preciso reparar, pensar e ir à raiz das coisas. Muitos de nós, trabalhadores, por falta de coragem, honestidade ou de oportunidade, nunca chega sequer a construir-se e desvendar a raiz social do seu próprio ser.

Sendo um filme produzido por um grande estúdio de Hollywood e vencedor de dois Óscares, surpreendeu-me a sensibilidade demonstrada num ponto em particular. É certo que há muitos filmes que mostram as condições de vida dos trabalhadores, mesmo explicitamente, mas neste caso há um pormenor que normalmente só quem adere à luta percebe: a aprendizagem. Para tal sensibilidade, presumo, muito terá contribuído livro homónimo de John Steinbeck.

Tom Joad, personagem principal, ingénuo politicamente ao início, é também ele um operário em construção. Vítima das contradições do capitalismo num momento histórico particularmente difícil e violento à vida humana - a Grande Depressão -, ele vive com a sua família um conjunto de experiências que lhe permite ganhar rapidamente uma consciência social que o incita lutar por justiça ao lado dos oprimidos.

O filme tem uma narrativa cujo ritmo pode não agradar a um espectador mais impaciente, imediatista, mas é extremamente rico em conteúdo, e por isso, mais que poder ver e ouvir, é preciso que o espectador se desafie a reparar. É que durante o filme várias temáticas são explicita ou implicitamente abordadas: a natureza de classe das leis e das autoridades (sempre em favor do capital e da propriedade privada), a importância das greves e da união dos trabalhadores, o desenvolvimento da corrupção moral dos homens perante o medo do desemprego, da fome, da falta de habitação, pois os trabalhadores e suas famílias ficavam frequentemente a habitar nos casebres das fábricas e latifúndios, emprestados pelos patrões que os chantageavam com o desalojamento, e aborda assuntos como a jorna, a migração... E Tom Joad não chega a perceber o porquê da miséria e da injustiça, está ainda confuso, em construção. Mas percebe o suficiente para se colocar do lado certo da barricada e que é necessário lutar.

O herói deste filme chama-se Tom como se poderia chamar Joe Hill, o seu nome cantado ou não, é como um espectro que ronda onde quer que haja injustiça e alguém que a combata.
Andarei por aí no escuro. Estarei em toda a parte para onde quer que olhem. Onde houver uma luta para que os famintos possam comer, estarei lá. Onde quer que haja um polícia a espancar alguém, estarei lá. Estarei nos gritos das pessoas quando se zangam. Estarei nos risos das crianças quando têm fome e as chamam para jantar. E quando as pessoas comerem aquilo que cultivam, e viverem nas casas que constroem. Eu estarei lá, também.

por Bruno - Leitura Capital*.

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domingo, 19 de abril de 2015

Consciência de Classe e Luta

Anda um espectro pelo My Two Thousand Movies…

Há uma tendência balofa de se considerar os humanos que vivem neste tempo histórico mais especiais que os seus antepassados. Mas não somos seres de excepção, apenas vivemos agora e não antes. A história de toda a sociedade até aqui – pelo menos desde a invenção da escrita – é a história da luta de classes, e assim continua a ser. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, isto é, opressores e oprimidos, estiveram ininterruptamente em conflito, transformando no confronto a sociedade até a revolucionarem, e dessa nova ordem social germinaram novas classes sociais, chegando a humanidade até ao modo de produção social que hoje vivemos. Quer gostemos ou não de aceitar a ideia, o nosso tempo não é uma excepção histórica e continua a ser constituído por diferentes classes sociais e em mútua oposição. 

A nossa época, a época da burguesia, classe que – outrora progressista - ao tornar-se predominante fez desaparecer o velho feudalismo, pariu das suas entranhas o seu próprio coveiro: o proletariado. Esta nova classe social que se confronta naturalmente com o seu criador, quando se tornar ela própria na classe predominante, será a obreira da futura sociedade humana, feita à sua imagem e semelhança.

Contudo, a nossa sociedade, mantida sob o poder predominante da agora conservadora burguesia, tem uma necessidade fundamental: o lucro. Dessa sua suprema busca pela maximização das taxas de lucro, algo profundamente conservador contamina quase tudo o que existe, o Cinema incluído. Não é por acaso que os filmes que mais frequentemente passam nas TVs e salas de cinema são os que são. O entretenimento pelo entretenimento predomina. A superficialidade segura o status quo. A arte e tudo aquilo que obriga a reflexão soa-nos imediatamente a algo diferente e precioso.

O My Two Thousand Movies é uma criação da sociedade burguesa, só possível graças à frenética evolução da técnica que o capitalismo permitiu à humanidade, nomeadamente as novas tecnologias relativamente à reprodução da arte e a sua distribuição, mas é também, e sobretudo, parte do coveiro desta sociedade que lhe permitiu poder existir e um suave cheiro a novo mundo. Pois o M2TM é, pela difusão da memória cinematográfica que promove, parte daquilo que consideramos e sentimos como diferente e precioso.

No confronto entre a burguesia e o proletariado, refina-se tanto a opressão como a resistência, os trabalhadores aprendem, matura-se a luta. O M2TM com este ciclo, querendo ou não, tenha ou não consciência disso, é resultado dessa mesma maturação e toma partido claro pelo proletariado, ou não fosse essa a classe social do Chico, da minha, e da esmagadora maioria dos seus fãs. Ou não fosse esse o partido que se toma aquando da reflexão e maturação feita a partir da vida, nomeadamente com a fruição de uma arte tão completa como é a dos filmes, e que o M2TM nos proporciona. Este ciclo - Consciência de Classe e Luta - que terá lugar nos próximos dias, festejando o 25 de Abril e o 1º de Maio, é o corolário de tudo isto.

A luta pela distribuição e fruição da cultura no qual o M2TM participa e que o torna precioso, está directamente ligado à luta proletária. Do outro lado da barricada a burguesia responde com a capitalização das limitações ao acesso à arte. Toda a superstrutura, desde as leis, a polícia, os média, que hoje estando maioritariamente na mão da classe dominante, pelo capital monopolista, levantam de forma mais ou menos aberta uma caçada a quem ameace a capitalização do acesso às artes e, exemplo disso, foi o apagão ao M1TM. É assim a luta de classes: tenhamos ou não consciência dela, ela encontra-se directa ou indirectamente em todas as nossas pequenas e grandes acções do dia-a-dia.

Pois é! O proletariado é a classe progressista do nosso tempo histórico. É a classe social que tem na sua génese o potencial de negar a sociedade da burguesia – o capitalismo – e construir o futuro. Como sujeito histórico tem uma hercúlea luta pela frente contra a burguesia. O choque é inerente a ambas, sem fuga possível. Ora, imaginem como seria se tivéssemos todos consciência da posição e do papel histórico que temos como proletários! Não foi por acaso que Bento de Jesus Caraça escreveu, entre outros pontos, que um homem culto é aquele que «tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence». O My Two Thousand Movies não podia festejar melhor o 25 de Abril e o Primeiro de Maio, desafiando desta forma os seus fãs a reflectir por via cinematográfica a sua condição e posição no cosmos, em particular, na sociedade em que vivemos.

O desafio começa amanhã: Ciclo Consciência de Classe e Luta!

sábado, 18 de abril de 2015

Nuvens Dispersas (Midaregumo) 1967



Yumiko, a jovem esposa de um funcionário do Governo, está grávida pela primeira vez. Ela e Hiroshi, o marido, planeiam mudar-se para os Estados Unidos, mas os planos são destruídos quando, poucos dias antes da viagem, ele é atropelado por um carro e morre.
No julgamento, o motorista envolvido no acidente é inocentado e liberto da obrigação de pagar qualquer tipo de indenização à viúva, mas para se livrar do peso da culpa que massacra a consciência, resolve ajudá-la com uma quantia mensal. A partir de um acontecimento trágico as duas almas unem-se nesse pacto involuntário, criado, de um lado pelo instinto de sobrevivência e do outro pela tentativa de redenção.
O último filme de Mikio Naruse interpreta-se como a última melancólica dança (com um sombrio tango a acompanhar), de uma noite de folia, agora ténue, agora oscilando entre a linha ténue que separa a embriaguez da sobriedade. É o equivalente cinematográfico a uma ressaca, embora a névoa inebriante que o filme transmite é parte do seu charme, muito em sincronia com a fotografia a cores, profundamente saturada, que constantemente ameaça (especialmente durante uma sequência temporal alargada), para derramar sobre as suas fronteiras uma espécie de libertação emocional..
 É um drama vividamente composto, que descreve dois dos temas preferidos do realizador: o infortúnio e o desejo. Além de ser o seu último filme também é um dos seus melhores, e um dos seus poucos filmes a cores. Num diálogo ao longo do filme, ouve-se: “From the youngest age I have thought that the world we live in betrays us; this thought still remains with me". São como se fossem palavras do próprio realizador, da convicção da sua carreira, o mistério, a tragédia, com que ele define a vida humana.

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quinta-feira, 16 de abril de 2015

Yearning (Midareru) 1964

 Tendo ficado viúva durante a guerra após apenas 6 meses de casamento, Reiko quase reconstrói sozinha a loja de bebidas da família do marido, após ter sido bombardeada. Dezoito anos depois, a sua loja e outros pequenos negócios estão a perder concorrência para um novo supermercado no final da rua. Como se isso não fosse suficiente, Reiko precisa de se esquivar das cunhadas que desejam se livrar dela, casando-a, além de tomar conta do violento cunhado mais novo, Koji.
O título em inglês do filme, "Yearning" é um engano, concentrando-se na imagem de um melodrama romântico, que embora presente de alguma forma, está longe de ser a preocupação principal do filme. "Midareru" significa algo como "desordem", e, de facto, os franceses e os italianos têm um título mais apropriado, Tourments e Tormento (tormento, angústia, dor ou sofrimento), que se aproxima mais do sentimento central do filme. Tal como acontece em muitos filmes de Naruse, a mudança social é um ponto importante, neste caso a chegada dos supermercados modernos com o seu efeito inevitável de atirar mercearias locais para fora do negócio.
Tal como a grande maioria da obra do realizador, também este filme teve pouca divulgação fora do país, mas ainda valeu à actriz principal, Hideko Takamine, um prémio de melhor actriz no festival de Locarno. O filme nunca teve estreia comercial nem em Portugal nem no Brasil.

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quarta-feira, 15 de abril de 2015

Quando Uma Mulher Sobe as Escadas (Onna ga Kaidan wo Agaru Toki) 1960



Mikio Naruse tem tido bastante reconhecimento nos últimos anos, depois de uma longa vida nas sombras dos realizadores mais famosos internacionalmente e auteurs reconhecidos como Ozu e Kurosawa. O seu estilo não é tão reconhecível ou ele é pronunciado como algum desses realizadores, e a sua tendência para o material temático de "retratos de mulheres" provavelmente também contribuiu, infelizmente, para a falta de seriedade a respeito do seu trabalho. No seu caminho, contudo, ele acabou por ser tão diferente e digno de atenção como os colegas mais conhecidos. "Quando Uma Mulher Sobe as Escadas" parece trazer uma mudança para Naruse. Por um lado, no final dos anos 50, ele expandiu a sua obra para o formato widescreen, fazendo pleno uso da tela comprida e estreita para algumas composições muito interessantes. Este filme também usa uma iluminação muito mais expressiva, e as muitas cenas de interiores em ainda lembram os tempos do film noir, graças a uma iluminação dinâmica e ao uso das sombras. O efeito é reforçado pela banda-sonora jazzy.
Mas estes são toques principalmente cosméticos, e de certa forma a partida dos filmes anteriores não é tão drástica como pode parecer. Na história da viúva Keiko Yashiro (a bonita Hideko Takamine), uma mulher empregada como bar hostess, o filme partilha o mesmo território temático que Naruse foi continuamente desenvolvendo. As condições, oportunidades e pensamentos das mulheres no Japão do pós-guerra foram uma fonte contínua de material para ele, e este filme, como os outros, usa o meio do distrito de Ginza para sondar levemente sobre as condições sociais que as opções do limite das mulheres em vida. Há pouco comentário social evidente no filme, mas é quase impossível ver a sua narrativa como algo além de uma condenação do tratamento das mulheres. Naruse apresenta uma sociedade em que as mulheres são forçadas pelas circunstâncias, muitas vezes com maridos impostos, em que devem rebaixar-se para sobreviver, e, de seguida, são julgadas severamente por esses mesmos homens.
O filme é passado no Japão do pós-guerra , no distrito de Ginza, onde as mulheres solteiras tinham duas opções: ou trabalhar num bar, sendo pagas para andar com homens bêbados, ou abrir um bar próprio. Keiko, a popular "mama" num desses bares, observa as colegas mais jovens, sairem para outros empregos, atraindo todos os seus clientes. Keiko ainda é bonita, mas está a ficar cada vez mais velha, e a sugestão é que chegou a hora de ela abrir o seu próprio bar. O problema é que, para arrecadar dinheiro, ela tem que explorar até os seus mais ricos clientes masculinos. Quando o filme começa, ela sobe as escadas até ao bar, explicando na narração o quanto ela despreza esta vida. Naruse pinta Keiko como a tradicional mulher, no meio de um Japão modernizado, cercado por bebidas, luzes e homens que adoram mulheres. O seu estilo não é muito diferente ao de Ozu, mas o foco de Naruse é mais específico. Em Quando Uma Mulher Sobe as Escadas, Naruse debruça-se mais sobre a captura do realismo psicológico da mulher, em vez das dinâmicas familiares de Ozu.Numa última análise, Keiko está sozinha, com todas as probabilidades contra ela, mas ela continua a tentar. Continua subindo as escadas.

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terça-feira, 14 de abril de 2015

Flowing (Nagareru) 1956

Otsuta (Izuzu Yamada) está à frente de uma casa da casa de gueishas Tsuta, em Tóquio. O negócio está cheio de dívidas, e a sua filha Katsuyo (Hideko Takamine) não vê qualquer futuro nos últimos dias do negócio das gueishas. Mas Otsuta não vai desistir. A história começa quando chega a esta casa uma nova empregada de nome Oharu (Kinuyo Tanaka), e vai retratar os dias da vida desta profissão quando não estão a entreter os clientes.
Mais uma obra de Mikio Naruse que pode ser considerada um "filme de mulheres". Naruse era bastante conhecido por abordar temas que lidavam com questões femininas, sempre com interpretações bastante fortes, mas aqui em "Nagareru" ele aborda um conjunto mais amplo de problemas enfrentados pelas mulheres no ambiente do pós-guerra. Embora voltado para os problemas de várias mulheres que trabalham numa casa de geishas, o filme examina cada personagem feminina ao mais pequeno detalhe, enquanto manobra para o lado qualquer presença masculina (há várias personagens masculinas, mas são todas menores e irrelevantes). Mas poderão estas mulheres sobreviver sem homens como companheiros e ajudantes? O negócio das gueishas está a começar a entrar em decadência, a história passa-se numa altura em que a prostituição era considerada ilegal no Japão, cada uma das mulheres está sem homem por diferentes razões, e as suas opções parecem um pouco distantes entre si.
O que o faz o filme resultar é toda esta interacção entre as personagens femininas, e mais informação adicional de cada uma destas personagens vem ao de cima, e pequenos detalhes são adicionados a cada personagem de forma a fazer progredir a caracterização individual das personagens. Assim, cada actriz é maravilhosa, em especial Isuzu Yamada que tem a maior gama de emoções (mãe preocupada, mulher de negócios, irmã mais nova) e interpreta cada um destes estados de uma forma muito subtil. Para interpretarem as gueishas , as actrizes passaram algum tempo com as gueishas reais em que a escritora Aya Koda se baseou para a sua história, para recolherem alguns maneirismos para desenvolverem durante as actividades típicas que iriam praticar (dançar, cantar, ou tocar shamisen).

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segunda-feira, 13 de abril de 2015

Nuvens Flutuantes (Ukigumo) 1955

Um flashback para o primeiro encontro entre Yukiko Koda (Hideko Takamine, a habitual protagonista de Naruse), e Kengo Tomioka (Masayuki Mori), numa área rural ocupada pelos japoneses na Indochina, durante a Segunda Guerra Mundial, pouco depois de Yukiko aparecer na casa de Tokyo de Tomioka que ele divide com a sua velha e doente esposa Kuniko (Chieko Nakakita). Yukiko sabia que ele era casado desde o início, mas ela acredita que ele a vai receber de regresso ao Japão, e cumprir a promessa de se divorciar da esposa, para casar com ela. Mas quando a guerra acaba e eles são repatriados de volta para o Japão, Yukiko descobre que ele não vai deixar a mulher, nem reacender a paixão que começou numa terra estrangeira.
Há uma linha muito ténue entre o amor e a paixão, e as normas culturais são talvez o factor mais decisivo. No ocidente, os ex-amantes que não concordam em ser abandonados e perseguem os/as seus ex-pares, têm um rótulo - stalkers. Na altura que este filme saíu, a obsessão pelo amor não correspondido não era visto como algo tão sinistro, tanto no Ocidente como no Oriente. Na verdade, era a base para muitas histórias de amor satisfatórias, incluindo clássicos como "Jezebel", "Gone With the Wind" ou "Wuthering Heights". Naruse, um homem que viveu uma vida bastante infeliz, e cujo prolongado afastamento da mulher, a actriz Sachiko Chiba, o levou ao divórcio,  dá-nos um olhar, principalmente sentimental, e mesmo invejoso, sobre o amor. No entanto, nenhum caso de amor começa com tristeza, e o olhar melancólico de Naruse no princípio deste caso é a flor a lutar pela luz, num campo cheio de ervas daninhas.
O papel da mulher na sociedade é muito mais complexo aqui, um dos filmes mais aclamados de Naruse. Passado num ambiente de pós-guerra, Naruse contrasta o exotismo idealizado do inicio de uma relação com as suas turbulentas consequências, contrastando com a dura realidade da derrota do Japão na Guerra. Como também pode ser visto em alguns filmes de Ozu, são as mulheres que são vistas como sendo mais pragmáticas quando se lida com as realidades práticas da vida quotidiana, enquanto os homens chafurdam na derrota e na vergonha. Naruse é muito mais convincente do que Ozu, neste neo-realismo melancólico.

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domingo, 12 de abril de 2015

Sound of the Mountain (Yama no Oto) 1954

"Yama no Oto" retrata a decadência da família tradicional. Uma mulher (Setsuko Hara) descobre que o seu marido a está a trair com outra mulher; o pai deste, por gostar muito da nora, volta-se contra o filho, e passa a fazer tudo para salvar o casamento dos dois, interferindo à sua vontade.
Adaptado de um livro do vencedor de um prémio Nobel, Yasunari Kawabata, "The Sound of the Mountain" é declaradamente do filme preferido de Naruse, entre a sua obra, e até certo ponto, é fácil de perceber porquê. Um trabalho de texturas e perspectivas envolventes, com cenários e exteriores projectados para se parecerem com a própria casa e vizinhança de Kawabata, o filme revisita, e com mais confiança, os temas já explorados no filme do "regresso" de Naruse, "Meshi" (o primeiro deste ciclo), com o qual partilha até alguns actores. É também uma história de amor platónico de uma extrema precisão psicológica, que nos oferece com profundo detalhe uma comovente relação complexa, entre um homem mais velho e uma mulher mais nova.
Para quem cresceu a ver filmes ocidentais é fascinante ver como foi tratada a matéria deste filme, com temas tão difíceis, por exemplo para uma Hollywood dos anos 50, como o adultério, o divórcio e o aborto. O tema do aborto era completamente tabu nos filmes ocidentais dos anos 50, e quando era abordado era sempre com muita bagagem política e emocional. Neste filme de Naruse todos estes temas são abordados com bastante naturalidade.
"Yama no Oto" é um dos melhores exemplos do género preferido de Naruse, o "shomin-geki (filmes sobre o quotidiano das pessoas normais).

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